[Parlatório] Pedro Moura

Na semana passada postamos uma entrevista com uma das convidadas da Des.Gráfica 2017, Dominique Goblet. Hoje é a vez do outro convidado, o pesquisador, crítico e escritor português Pedro Moura.

Pedro Moura tem tocado há anos um espaço de crítico de história em quadrinhos (banda desenhada, como dizem os portugueses) na internet, o Ler BD. A proposta dele era de ensaios sobre quadrinhos, com textos mais longos, aprofundados e com embasamento teórico, tratar mais de obras do que de personagens, além de não se comprometer em dar conta de lançamentos.

Vale ainda comentar que conversarei com Pedro Moura na feira Des.Gráfica, no dia 5 de novembro (domingo), a partir das 18h, no MIS de São Paulo.

O trabalho de dele é uma das influências deste blog. Muito obrigado, Pedro.

Entrevista em colaboração de Aline Zouvi, Maria Clara Carneiro e Pedro Franz

O Ler BD já está na ativa há 15 anos, contrariando uma lógica difundida de que na internet os textos devem ser curtos e de absorção rápida, que é preciso um chamariz caça-clique. Passado esse tempo, como você avalia essa trajetória de trabalho crítico sobre quadrinhos no blog?

Penso que seria bom recuar apenas um pouco, e dizer que o meu trabalho de escrita sobre banda desenhada começou bastante tarde em Portugal, em relação ao que se andava a escrever, e que foi graças à existência da revista Quadrado, na altura nas mãos da Bedeteca de Lisboa, e ao João Paulo Cotrim, que entrei nessa actividade. Tinha uma grande admiração pelo próprio Cotrim e pelo Domingos Isabelinho, apesar de terem características bem distintas de escrita, e foi incrível partilhar aquelas páginas. O “monstro” despertou com um ensaio que escrevi sobre um livro do Filipe Abranches… Por um lado, o blog servia de poiso a textos curtos que andava a escrever para variadas revistas como a flirt ou a Mondo Bizarre, mas rapidamente comecei a compreender que poderia fazer textos ensaísticos originais.

Páginas de Filipe Abranches

Desde cedo que me desliguei da necessidade de escrever para “o grande público”. A minha missão não era de forma alguma de divulgação, jornalística ou de encómios simplistas, mas sim a de uma tentativa de pensamento ensaístico. Alguém chamou o meu ensaio sobre o livro do Abranches de “excesso académico”, o que foi para mim um estímulo positivo. Foi um processo lento e nem sempre elegante, mas percebi que o que queria era mesmo escrever textos que pensassem sobre e com a banda desenhada. Ao longo dos anos tenho mudado os registos, por várias razões, mas se posso dizer algo mais generalista sobre todos os textos é que tento escrever textos que podem ser lidos no momento em que são escritos como, espero eu, não sem alguma presunção, que podem ser lidos passados 10 anos. Ou seja, é menos importante a “novidade” do que a pertinência do que é dito.

A ideia do blog para mim nunca foi objectivamente importante. Isto é, para mim era e é uma plataforma como outra qualquer. Não me considero um “blogger” no sentido mais típico da palavra, mas um crítico ou escritor sobre bd/hq que tem o blog como seu ponto de exposição privilegiado. Se pudesse escrever para publicações (e se fosse pago!), fá-lo-ia…

Quanto a um balanço, não sei bem como o fazer. Por um lado, pessoalmente, é algo que me dá imenso prazer e é um instrumento importantíssimo que me ajuda a aprender, pensar e ler. Não é apenas uma metáfora, é mesmo profundo. É quando escrevo sobre um qualquer texto que melhor pondero sobre ele, que me apercebo dos seus mecanismos. Analisar é ler melhor.

Gostaria de dizer que tenho a mesma energia do que há uns anos, mas neste momento estou a atravessar uma fase de desalento, sobretudo por sentir não existir um diálogo mais alargado em língua portuguesa. Daí ter sentido a necessidade de abrir um outro blog, em língua inglesa [o Yellow Fast & Crumble].

Você poderia nos falar sobre sua pesquisa acadêmica (tanto seu mestrado quanto
seu doutorado)? De que forma essa pesquisa se reapresenta em seus textos no blog
Ler BD?

Não sei se o meu percurso académico é anterior, em termos de causalidade, ou posterior à minha actividade de crítico. Penso que é uma relação simbiótica. A minha vontade de continuar a estudar prende-se com querer adquirir novos métodos e conhecimentos de leitura crítica, mas é a minha actividade de escrita que me pôs nesse caminho também… Eu fiz um Mestrado em Filosofia Estética, sob a orientação da Professora Maria Filomena Molder, uma das mais conceituadas estudiosas de Walter Benjamin da Europa, e depois o Doutoramento em Literatura Comparada sob a orientação da Professora Fernanda Gil Costa, especialista em literatura, e o Professor Jan Baetens, reconhecida autoridade sobre banda desenhada (mas não só; é um escritor conceituado, estudioso de vários tipos de literatura-imagem, etc.).

Ambos os projectos estavam relacionados com banda desenhada. No primeiro caso, estudei vários textos da banda desenhada francófona contemporânea, e no segundo a produção portuguesa. Para o Mestrado, o foco conceptual era a memória, e no do Doutoramento o trauma. Em muitos aspectos, foram temas complementares, uma vez que ambos teriam a ver com a reconstituição “textual” das percepções dos eventos passados, enquanto contributo para a tessitura da identidade, fosse esta pessoal, sobretudo, mas também social, colectiva, etc.

Penso que é particularmente visível, e a maior parte das vezes de uma forma infeliz, na integração dos tais instrumentos teóricos, culturais e intelectuais e metodologias de trabalho, na escrita sobre banda desenhada. Isto significa que por volta de 2007-2008 há uma particular inflexão por conceitos específicos de pensadores tais como [Gilles] Deleuze e [Félix] Guattari, [Jacques] Derrida, entre tantos outros, ainda que Benjamin se tenha revelado mais instrumental e potente, no longo curso. Às vezes, tentava esgrimir as minhas leituras teóricas à luz de novos textos criativos e artísticos desta nossa área de predilecção. Já quando me aproximo dos anos do doutoramento, começa a haver uma preocupação com instrumentos ainda mais sofisticados de politização da memória, construção colectiva da identidade, etc. E, claro está, a leitura atenta do que se foi produzindo de Estudos de Banda Desenhada (Comics Studies), que tento acompanhar de forma intensa, revelará os seus frutos na inclusão de novos instrumentos de análise, dimensões de atenção, formas de ver, corpora mais alargados, etc.

Seja como for, quer nos textos de crítica quer nos académicos, o princípio de “encontro” e de influência mútua é o mesmo. Iluminar os textos de banda desenhada com a luz garantida por essas novas concepções intelectuais e culturais, compreender essas abordagens à luz das possibilidades expressivas da banda desenhada. Ler melhor a bd  graças aos instrumentos teóricos, ler melhor a teoria graças à banda desenhada… A posição do crítico deve ser sempre a de desconfiar de fórmulas, visões essencialistas, ideias feitas e narrativas demasiado arrumadas, inclusive, ou até sobretudo aquelas criadas por si mesmo. Temos de tomar cuidado para não tornar as nossas próprias posições em sistemas empedernidos. O que é difícil…

Pode ser uma simplificação resultado de um olhar estrangeiro, mas Portugal parece ocupar um lugar interessante para o olhar da crítica. Talvez seja um  pouco arriscado de dizê-lo, mas nos parece, ao mesmo tempo, “central” e “periférico” (usando as aspas aqui por todos os problemas que essas expressões trazem). Como qualquer outro cenário, imaginamos que isso traz potencialidades, mas também diversas barreiras a contornar. Você poderia falar um pouco sobre como é, pra você, ser um crítico de quadrinhos em Portugal?

Não posso falar senão em meu próprio nome, naturalmente, ou pelo menos falar a partir da minha perspectiva, que é necessariamente limitada, enviesada e, talvez, sectária. Eu próprio escrevi alguns textos de natureza polémica para os dossiers-balanço da Bedeteca de Lisboa, ficando responsável pela parte da crítica e, durante muito tempo, escrevia que pura e simplesmente não existia crítica de banda desenhada em Portugal. Continuo a achar que não existe muita.

Há muitas pessoas a escrever sobre banda desenhada, sem dúvida. Há muitos blogs, fóruns na internet, caixas de comentários concorridas, e algum espaço, mínimo, nas páginas de alguns jornais. Todavia, a esmagadora maioria desse trabalho reduz-se à divulgação (e há casos em que é tão-somente a repetição, fora algumas manobras de maquilhagem, das notas de imprensa enviadas pelas editoras) ou então a opiniões epidérmicas, sem grande relevância crítica. Acredito que para escrever crítica sobre um determinado projecto se tem de atingir alguns padrões ou níveis mínimos de actividade, desde a sua contextualização histórica e editorial, à sua comparação a textos irmanáveis até, acima de tudo, uma análise dos seus componentes estruturais (da narrativa à organização visual, é certo, mas abrindo o escopo à materialidade do projecto, ao contexto específico, ao papel social relevante, etc.), passando também a uma leitura interpretativa sob os domínios da cultura, política, estética, etc. Infelizmente, pela falta de espaço, muitos escritores perdem-se em questões superficiais, descrições basilares, ou textos impressionistas que, bem lidos, não revelam grande pensamento próprio.

Dito isto, existem pessoas que têm angariado algum respeito partilhado, sobretudo pelo seu trabalho pioneiro, quer em termos de levantamentos arquivais quer em termos de terem dado início à própria possibilidade do seu estudo (António Dias de Deus, Leonardo De Sá, João Paiva Bóleo, entre outros). Há também críticos que, tendo estratégias bem distintas de trabalho, gostos diferentes, e oportunidades também desiguais de desenvolvimento dos seus interesses, são o garante da existência de uma massa crítica mínima em Portugal no que diz respeito aos jornais e/ou sites de informação. Poderíamos elencar Sara Figueiredo Costa no Expresso, João Ramalho Santos no Jornal de Letras, ou de vez em quando o José Marmeleira no Público (os dois primeiros fazem sobretudo reviews informadas, ao passo que o Marmeleira faz peças de maior porte) e ainda João Miguel Lameiras (que tem estado envolvido com alguns projectos editoriais, fazendo os seus enquadramentos histórico-críticos) Depois temos o editor e autor Marcos Farrajota, que tem uma escrita contundente em várias plataformas, sobretudo online, ou pessoas que escrevem menos como Gabriel Martins e André Azevedo, mas que quando o fazem não deixam de providenciar ideias interessantes, e, claro, Domingos Isabelinho, cuja produção diminuiu em língua portuguesa, mas continua activo nos circuitos mais internacionais. O site bandasdesenhadas.com, com o qual colaboro regularmente “nos bastidores”, sendo menos significativo, diria, na vertente crítica, não deixa de apresentar alguns balanços e instrumentos fundamentais para reforçar o discurso informado, elaborados pelo seu organizador, o Nuno Pereira de Sousa.

Depois existem pessoas que escrevem esporadicamente sobre banda desenhada nos jornais ou outros locais, mas têm também ideias excelentes, por serem nutridas de uma compreensão alargada da cultura e da produção intelectual. A jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho é um exemplo máximo.

Fora estas escritas mais “visíveis” ou “públicas”, tem havido nos últimos anos mais gente a escrever academicamente sobre estas áreas. Depois da edição em livro da tese do Rui Zink, estava com esperança que houvesse um incentivo a maiores e mais visíveis trabalhos, mas infelizmente isso não se verificou, e a lança de Zink ficou (e está ainda) isolada, com pesar para a área. O que tem surgido, quer em teses (algumas das quais publicadas em livro) quer em artigos, revela, sinceramente a meu ver, haver ainda aí muito trabalho por fazer em termos de familiarização com a produção académica específica à área. Houve um livro, por exemplo, que faz todo um edifício comparativo entre bd e cinema a partir de uma comparação entre um único exemplo de cada, o que tornava todo o projecto problemático. Além de que, tais como outros, parecem ser feitos num vazio de produção internacional, como se a pessoa estivesse a ser totalmente original no seu projecto, quando muitos dos instrumentos estão já fundados, fabricados, testados e melhorados por uma bibliografia assombrosa… Mas há novos investigadores muito informados, integrados e atentos que poderão vir a mudar este panorama de forma mais radical e, mais importante, mais duradoura.

Ou seja, penso que essa perspetiva é, com efeito, algo errónea, não sendo a crítica de banda desenhada em Portugal nem tão variada nem tão musculada como poderia ser.

Quanto ao que significa ser-se crítico de banda desenhada, em termos pessoas, não sei como responder. Não há quaisquer experiências que nasçam a partir dessa “condição”… É uma actividade sem grande prestígio ou préstimo social, logo sem se traduzir em nada de concreto. Há leitores, e isso é felicidade suficiente.

A exposição/publicação Divide et Impera/Impera et Divide, que você organizou com Warren Craghead III e que apresentava trabalhos de Frédéric Coché, Ae-rim LeeAndré Lemos, Ilan Manouach, Andrei Molotiu, Fabio Zimbres e do próprio Craghead, foi um interessante e importante recorte da experimentação da banda desenhada no final da década passada. Apesar de realizada há quase uma década, para grande parte do público de BD, os trabalhos ali reunidos continuam apresentando certo estranhamento. Pensando na sua vinda para a Des.Gráfica, cujo foco com a BD se aproxima daquela iniciativa, você poderia falar um pouco sobre como vê a experimentação da banda desenhada atualmente e o que tem te interessado nesse sentido? O que mudou (e se mudou) da época que você organizou a Divide et Impera/Impera et Divide pra hoje?

Essa pergunta é, sem o parecer, extremamente complexa. Agradeço imenso as palavras, mas na verdade não sei se houve assim tanto impacto ou reconhecimento da exposição e do livro-ensaio… Afinal de contas, trata-se de uma exposição (ou duas) que tiveram um público extremamente restrito e uma edição que não teve quase circulação nenhuma…

Seja como for, não haverá dúvida alguma que foi uma tentativa minha e do Warren Craghead III, tornada possível em primeiro lugar pela sua integração no Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora e, depois, na galeria Second Street de Charlottesville, em mostrar práticas que, sendo de banda desenhada, procuravam contornos bem distintos. O objectivo foi sempre sublinhar práticas não que viessem de fora da banda desenhada e que a trabalhassem como um objecto estranho ou distante – como faz, mesmo que brilhantemente, toda aquela linha de artistas de [Roy] Lichentenstein a Rivane Neuenschwander.

Não podemos negar, como disse atrás, que a banda desenhada tem a sua própria história, a qual está sobretudo subsumida a princípios do entretenimento ligeiro, as narrativas para um público infanto-juvenil, ou um certo escapismo de fantasias… nada disto significa que não tenham existido exemplos de uma banda desenhada que não tenha feito a sua própria pesquisa interna, em termos formais e estéticos, em que não tenham existido casos de textos criados para públicos diferenciados. No entanto, em termos gerais, ela foi uma linguagem mais empobrecida em termos de exposição e experimentação cultural e artística, penso que concordaremos com essa visão.

Todavia, a partir da década de 1960, quer nos Estados Unidos e na Europa quer no Japão (e noutros países, mas com menor intensidade), começaram a surgir experiências de expressão dentro desta disciplina criativa que tentavam escapar a essa percepção social ou“fórmula de expectativas”. Ou seja, precisamente essa ideia de “estranhamento” em relação a uma “normatividade” que também teve de ser construída…

Na minha perspectiva, essa ideia de normalidade é tão poderosa que mesmo em circuitos que, à partida, defenderiam uma abertura da criatividade na banda desenhada, se revelem posições tão conservadoras e de repetição ao ponto de serem “cegas” para com esses gestos criadores. Basta pensar nesta ideia… na Europa esgrime-se muito, por influência da cultura francófona, o conceito da bd enquanto “nona arte”, como se ainda fizesse algum sentido essa hierarquização das artes. Mas o pior para mim está que se despeja esse termo para falar de Moebius, Eisner, Pratt ou o que for, mas nunca se pensa o que “arte” que mesmo dizer. Logo, as mais das vezes, quem usa essa expressão não tem interesse algum em que haja experiências artísticas propriamente ditas no seio da banda desenhada. Quer dizer, não admite experimentação, escapes formais, contaminações inesperadas, rasgos diferenciadores, etc.

A Divide et Impera queria apenas ser uma pequena amostragem dessa produção. Outros gestos surgiriam, e bem mais famosos, desde a antologia Abstract Comics, do próprio Molotiu, como um catálogo como Cult Fiction, organizado por Paul Gravett. Sinto, porém, que muitas dessas tentativas, com a excepção da de Molotiu, muito específica e conseguida no seu gesto, desde exposições a publicações, parece ainda estarem a pedir favores a outras áreas da criação para justificar a experimentação na banda desenhada. O que gostava de ver era uma atitude para com essas experiências por si mesmas, sem a necessidade dessa associação externa.

Nomes tais como os de Dominique Goblet, Aidan Koch, Jochen Gerner, Martín VitalitiAnders Nilsen, Yuchi Yokoyama, Lala Albert, ou Léo Quievreux, algum do trabalho de Ruppert e Mulot ou de Pascal Matthey, cada qual à sua maneira, continuam a fazer pesquisas muito interessantes em termos de “explodir” (num sentido etimológico, de “aplauso entusiástico”, e que estenderia para a noção de abertura) este território.

Caderno de Anders Nielsen

Mas actualmente temos também outros tantos autores que tentam recuperar uma certa “naturalidade” de alguns dos pontos clássicos da banda desenhada – como o programa narrativo, a expressão autobiográfica (uma conquista mais recente, é certo, mas amplamente ancorada), a manutenção do personagem central com construção psicológica, e até a pesquisa interna da história estilística desta arte, etc. – para nutrir uma experimentação muito própria. Nesse campo, agregaria os nomes, bem diversos, de Marc-Antoine Mathieu, Olivier Schrauwen, Tommi Musturi, C.F., J.-M. Bertoyas, Marko Turunen, Olivier Josso Hamel, outros trabalhos de Ruppert e Mulot, ou dos portugueses Amanda Baeza, Francisco Sousa Lobo, Mao, Hetamoé ou Tiago Baptista, ou dos brasileiros Pedro Franz e Rafael Coutinho, estes dois últimos com trabalhos muito distintos quer entre si quer no interior da sua produção.

Seja como for, estamos a atravessar um momento diferente dos anos 1990-2000, quando tínhamos toda uma série de títulos de revistas e antologias abertas à experimentação formal propriamente dita (The Drama, Ganzfeld, os títulos publicados pela Cinquième Couche ou a Frémok, os projectos da Oubapo) para dar caminho a outro tipo de introdução a linguagens distintas, quer narrativas quer gráficas. O termo “art comics” é esgrimido muitas vezes, mas precisaria de um maior enquadramento quer para o justificar quer para o tornar operativo. Penso em títulos tais como Komikaze, Mould Map, Volcan, sobre os quais já escrevi, quando me refiro a esse tipo de produção.

Esta resposta é, naturalmente, muito limitada, pois teríamos de ter partido da explicitação dos pressupostos que a informariam, mas espero que tenha apontado uma direcção. Apenas para lançar um desafio ou uma cutucada mais sacudida para todos aqueles que ponderam a participação na Des.Gráfica, ou enveredar por um território mais experimental, diria ainda outra coisa. A de que não vale a pena tentar “enganar” o leitor. A precisão, especificidade e originalidade do gesto expandidor na HQ não é encontrado por mero acaso ou uma espécie de subterfúgio formal, e muito menos de superficiais jogos de pirotecnica visual, técnica ou material. A verdadeira experimentação é visível e detectável através da exactidão do gesto, da compreensão profunda do que pode cumprir os contornos, e ultrapassá-los ou alterá-los, desta arte. Não existem artistas que o sejam verdadeiros através da ignorância ou do engodo, mas sim da pesquisa aturada e do respeito para com princípios internos à própria estruturação da arte a que se entregam. Isso nota-se nos projectos. A acção da Des.Gráfica poderá vir a ser um importante estímulo, e até inédito do mundo, por comparação a outros programas de bolsas de criação, mas é preciso não tombar numa displicência para com o que se pode fazer. Não basta ser “esquisito” para atingir o patamar da experimentação.

No lançamento de Habibi, de Craig Thompson, e aproveitando da publicação da edição portuguesa de Blankets, você escreveu um novo texto sobre este último livro, no qual afirmava que “reler Blankets, ou ler pela primeira vez o livro em português, é uma sensação de uma distância estranha, que parece ter deixado mais um hiato do que pontos de associação” e, mesmo não negando o que havia escrito anteriormente, você dizia ali que o havia escrito “num processo de – ainda – aprendizagem crítica”. Queríamos trazer esse momento – e imagino que deva haver outros semelhantes – para perguntar: como o tempo (e seus aprendizados e releituras) inferem na crítica?

A resposta a essa pergunta foi dada parcialmente quando discutimos o meu percurso académico. Mas também tem a ver com, por um lado, a própria natureza desta arte e, por outro, do estádio em que nos encontramos do seu estudo ou discussão intelectual.

O que quero dizer com isso é que a natureza da banda desenhada é necessariamente múltipla e exige que os seus instrumentos de crítica sejam, até de um ponto de vista técnico, diverso. A teorização da banda desenhada não é, de forma alguma, mais simples (nem tampouco mais complexa), do que qualquer outra actividade artística. Mas pelo seu percurso histórico, o seu papel social nas várias sociedades e culturas em que emergiu com alguma substância, e o relativo isolamento com que as tradições nacionais se desenvolveram, implicaram uma subprodução (o que não significa total ausência) de pensamento crítico. E nos últimos 20 anos temos assistido a uma espécie de corrida célere na produção dese pensamento. Isso significa que ainda não temos os instrumentos “pré-digeridos” de forma organizada, pelo menos de forma suficiente e suficientemente divulgada, que possa construir uma espécie de “plataforma mínima” de acordo entre os leitores críticos de banda desenhada. Há ainda uma parte de estocástico nos discursos em seu torno.

Não pode, portanto, ser surpresa que fazendo crítica, seja do que for, se procure uma aprendizagem contínua cujos passos individuais infleccionam esse mesmo desenvolvimento. Volto a repetir: temos de estar alertas para não ficarmos presos a ideias feitas, mesmo aquelas que criarmos nós. Isso só é possível com um contínuo confronto com outras leituras, visões e posicionamentos.

Muito se fala em falta de memória quando ações reacionárias aparecem com tanta força no mundo (como a marcha de grupos supremacistas em Charlottesville nos EUA e fechamento de exposições de arte no Brasil). De que forma a pesquisa acadêmica da autobiografia que dialoga com a questão da memória, como a sua faz, pode ser uma ferramenta para analisar esse comportamento conservador?

Não penso que seja falta de memória nesses dois casos, mas antes de uma activa vontade de reinscrever, apagando algo que estava por baixo, de novos interesses. É natural que seja assim que se construa a história humana, mas se estivermos de acordo que estamos a referir-nos a regressar a um patamar de menor conquista social, de menos diversidade nas vozes que se expressam, e num discurso que pretende ser limitador, então estamos perante um problema que não tenho receio algum de chamar de “civilizacional”. Não pretendo de forma alguma querer dizer que tenho um posicionamento neutro em termos políticos e/ou ideológicos (o que não é exactamente o mesmo). É impossível sê-lo, mas é importante estar consciente de como não se o é. Esses actos mascaram-se de uma vontade em defender “uma memória”, mas a verdade é que essa suposta memória é uma nova construção em detrimento da memória de outrem.

Teríamos de entrar em casos concretos para tentar compreender como é que isso se constituiria, e não penso haver aqui oportunidade para isso. A memória é necessariamente plástica, alterável e permeável aos vencedores da história, por isso interessa, e muito, que ela seja entrosada pelo combate político. A primeira lição que devemos aprender (com todos, [Karl] Marx, [Émile] Durkheim, [Louis] Althusser, etc.) é que a ideologia pretende apresentar-se como não-ideologia, isto é, como “normal”, “sempiterna”, “o fundo usual e objectivo das coisas”… É aí que o conceito da “distribuição do sensível” de Jacque Rancière, que constitui o que para ele é o “verdadeiramente político”, me parece operativo: esse é o complexo de indivíduos e grupos que tem acesso à voz, à expressão, à visibilidade e à participação activa e directa em todo o processo democrático, isto é, na vida e gestão da cidade. Nos nossos tempos, temos assistido a um crescimento exponencial e contínuo desses agentes da memória, seja ela individual ou colectiva, introspectiva ou social (estes são descritivos de um espectro, não termos que se excluam entre si).

Penso que o estudo da memória, e aqui não está necessariamente fechado ao mundo da banda desenhada, é fulcral nessa abertura do escopo e da possibilidade de haver mais vozes. Mas é preciso não cair numa espécie de reificação sobre o discurso académico. Ele não é um monolito e pode muito bem reinstaurar ou repetir acriticamente discursividades limitadas. Não é porque algo seja estudado na academia que se estará a contribuir necessariamente para uma maior “distribuição do sensível”. No que diz respeito à banda desenhada, basta ver como, mesmo em países como o Brasil ou Portugal, há uma maior insistência em dar atenção a textos internacionalmente reconhecidos ou a autores mais expostos comercialmente do que a novas vozes que tentam de facto expandir as potencialidades expressivas desta arte ou dar espaço a esses tais novos agentes…

Seja como for, acredito que o estudo académico, pautando-se por um rigor de análise, integração histórica e ponderação, continua a ser um (entre muitos, não o único e nem sequer o mais importante) facto de imensa importância para o reforçar dessa expansão. E até de resistência ou combate, na sua acepção política.

Você pensa que o quadrinho autobiográfico mudou conforme reflete o mundo em que está? Você percebe diferenças de temas surgidos nas autobiografias em BD no correr dos anos? Se sim, a pesquisa acadêmica, de alguma forma, reflete essa mudança do mundo e das obras que analisa, seja no seu ferramental teórico, seja na sua abordagem dos temas?

É absolutamente natural que o quadrinho autobiográfico se tenha alterado, mesmo que façamos uma sua história mais conservadora, e encontrarmos o seu ponto de partida em alguns textos da décadas de 1960-70 sobretudo nos Estados Unidos com Justin Green, Robert Crumb, Aline Kominsky, etc. Poderíamos recuar aqui e ali, e falar de projectos tão díspares como a memória de Miné Okubo nos campos de concentração nos E.U.A. para cidadãos japoneses ou seus descendentes, a autofantasia Zil Zelub de Guido Buzzelli, o perturbador “La deviation” de Moebius, entre outros, mas em cada caso estaríamos a procurar valências bem distintas da autobiografia.

Páginas de La deviation, de Moebius

Não há dúvida de que nos anos 1990-2000 ela se coalesceria finalmente num “género”, um pouco por todo o lado, e o Brasil não foi excepção (André Diniz, Caeto, Cynthia B. mas também as inflexões que teriam sobre os trabalhos de autores tais como [André] Kitagawa, [Marcelo] D’Salete, Franz), por isso, por um lado, houve uma certa normalização e congelamento num “género”, com as suas próprias fórmulas, expectativas e até espaços especificados do mercado. O entrosamento da autobiografia e das plataformas online levou até mesmo uma certa banalização do Eu, levando ao advento de uma escrita diarística que muitas vezes tem mais contornos solipsistas e narcisistas do que de uma pesquisa introspectiva. São menos interrogações do que afirmações do eu, no fundo. Todavia, o problema não está em existirem esses casos, pois a diversidade dever-se- ia celebrar. É papel do olhar crítico é separar o trabalho mais consequente daquele mais superficial, mas aqui entraríamos numa profunda discussão, sobre se se deve dar proeminência à estética ou ao activismo, se a quem se expressa ou a o que se expressa, etc.

Quanto ao estudo académico, depende, e regresso àquela questão da compreensão dessa esfera como um todo igual… não o é. Existem muitos trabalhos que simplesmente repetem muito dos princípios que já foram estabelecidos, discutidos e teorizados por outros autores, com pouca inflexão teórica e quase nenhuma dúvida, simplesmente deslocando-se para novos objectos de atenção. Mas se estes não alteram os instrumentos de análise, então algo está desde logo condenado.

Por exemplo, não compreendo bem qual seria a distinção entre o “ferramental teórico” e a “abordagem dos temas”, pois na minha óptica, um não é possível sem o outro. A própria escolha de uma base disciplinar vai ditar logo à partida aquilo que entrará no radar crítico e na própria forma de ler esses textos.

No meu projecto de doutoramento, que agora não importa aprofundar, tentei abordar precisamente exemplos de HQ contemporânea portuguesa que, em alguns casos, nas suas prestações autobiográficas, expõe menos as vicissitudes de uma novela pessoal do que transformam o protagonista-autor numa espécie de cifra de toda uma série de consequências do quadro de pequenas opressões quotidianas exercidas pelos poderes políticos sobre as possibilidades financeiras, económicas, profissinais e até de expressão cultural. Falei num quadro de “pequenos traumas”, para diferenciar de casos mais dramáticos – como os casos dos conflitos bélicos, ataques de cariz sexual, racistas, ou tragédias na novela familiar, doenças, etc. -, mas querendo alertar para uma mesma natureza ou processo de mecanismos psicológicos que fazem emergir cicatrizes a partir dessas agressões diárias, continuadas e sistémicas, ao ponto de parecerem “invisíveis” ou, pelo menos, “negligenciáveis”. Ora autores como Marco Mendes, Francisco Sousa Lobo e, noutros modos, José Feitor, Joana Figueiredo, Tiago Baptista, entre outros, criam tessituras complexas e aparentemente simples que reflectem esses “pequenos traumas”. Espero que, dessa forma, não apenas esteja a olhar para novas problemáticas como também se tente compreender como é que os instrumentos se alteram em relação a elas. E, claro, entender como é que a BD ou HQ contribui para tudo isso de uma forma tão particular.

Considerando a presença já quase “tradicional” de quadrinistas brasileiros em festivais como o de Beja (lembrando a edição de 2017 com Pedro Cobiaco e Rafael Coutinho), pode-se afirmar que o quadrinho brasileiro, em Portugal, ainda causa algum tipo de estranheza? Você poderia falar um pouco sobre a recepção que o leitor português tem da BD brasileira?

“Tradicional” não será, até porque a tendência de publicar HQs em edições portuguesas é relativamente recente. Relembremos que “tradicionalmente”, se se referir ao período durante as décadas de 1970, 1980 e 1990, havia uma grande comercialização de gibis da Bloch, Abril, Morumbi, sobretudo de produções norte-americanas em traduções de português do Brasil, com a expectável circulação do material do Mauricio de Sousa e, em menor escala, do Ziraldo. A penetração de produções mais “contemporâneas” deu-se no final dos anos 1980, com a distribuição em Portugal das revistas Chiclete com Banana e Animal, sobretudo (a Circo chegou muito limitadamente), mas esgotar-se- ia com o fim delas, sem continuação do mesmo tipo de acesso. Mesmo a chegada da Graffiti 76%, Café EspacialFront, Ragú, Tonto, etc. era muito, muito limitada (por vezes graças a contactos pessoais, não distribuição comercial). E apesar da Devir ter pólos no Brasil e em Portugal, não havia propriamente uma circulação dos autores nacionais de parte a parte, com a excepção do Lourenço Mutarelli, muito apreciado em Portugal.

Fora um ou outro gesto isolado, apenas por volta de 2012, com a colecção especializada da editora Polvo, é que começámos a ter uma oferta regular de autores brasileiros contemporâneos, seguidos dos esforços mais tímidos da Levoir (no seio da colecção “Novelas Gráficas”) e da Kingpin Books. Em 2013 organizei a exposição “Seis Esquinas de Inquietação” no Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, apresentando seis autores, dos quais apenas um (o André Diniz) tinha um livro publicado em Portugal. Portanto, é há muito pouco tempo que temos esta oferta mais solidificada, e a qual espero não apenas se mantenha de boa saúde como redobre de esforços, mas mãos destas e de outras editoras, mas que também conquiste um público cada vez mais alargado e diverso.

Continuam a existir alguns autores brasileiros, históricos ou novos, que gostaria muito de ver publicados e mais conhecidos entre os portugueses. Quanto à recepção, penso que tem sido muito positiva e diversificada. É claro que apenas posso responder por mim e não tenho qualquer base sociológica para me basear nisto, mas tendo em conta o tipo de HQ que tem surgido cá – a Polvo insistindo em linguagens contemporâneas, maduras, de temas mais abrangentes em termos de representação política, a Kingpin dando primazia a títulos de maior fantasia e emotividade, sem deslizar para géneros clássicos ou formulaicos, a Levoir preferindo trabalhos de perfis mais transversais – , diria que os leitores leem os livros por si mesmos. Quer dizer, não partem de forma alguma de uma ideia pré-fabricada do que deveria ser o “quadrinho brasileiro”, nem o reduzindo a anedotas turísticas, nem esperando qualquer espécie de folclore ou tipificação, seja ela uma reificação por via da “Globoalização” (um Brasil festeiro e bonito) seja pela via da “Pixotização” (um olhar docu-dramático e desolador da realidade mais desgraçada).

Tomam os livros pelos programas que eles próprios propõem. E sendo um público diverso, haverá interesses pelas mais variadas prestações, sejam as novelas delicodoces de uns Fábio Moon e Gabriel Bá, a recuperação de histórias “esquecidas” de um D’Salete, sejam as complicadas tramas de um [Marcello] Quintanilha ou as fugas formais de um Franz.

 

 

 

SERVIÇO:

A Des.Gráfica acontece no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, nos dias 4 e 5 (sábado e domingo) de novembro, das 13h às 20h. A palestra de Pedro Moura mediada por Lielson Zeni é no dia 5 e começa 18h. Não há cobrança de ingressos.

Mais informações:

Como chegar no MIS-SP

Des.Gráfica 2017

Publicado por lielson

Francisco Beltrão (1980) - Curitiba (2000) - São Paulo (2011) - Salvador (2017) - São Gonçalo (2018) - Santa Maria (2019).

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