[Vem Comigo] Quadrinhos dos anos 10

André Dahmer já havia sido indicado ao Prêmio Jabuti de Ilustração em 2015, por Vida e obra de Terêncio Horto, da Cia das Letras. É até engraçado, e essa indicação é um grande exemplo da necessidade de uma categoria própria de quadrinhos: o livro inteiro composto de praticamente apenas três desenhos concorrendo entre ilustrações rebuscadas de livros variados? Não é preciso justificar o valor do trabalho de Dahmer, é sabido o quanto a força dele reside no minimalismo do desenho confrontado com o texto absurdo – no sentido absurdo da realidade absurda em que vivemos, bem Beckett, Ionesco, mesmo. Mas essa força do contraste, pelo nó, é uma característica da mídia dos quadrinhos em si, que se vale da justaposição dos elementos.

O mais engraçado ainda é que o 3º lugar do Prêmio Jabuti de Quadrinhos é um dos livros do Dahmer que reúne tiras suas em que ele se solta bem mais… na ilustração. A série, iniciada em 2010, retrata o início de século que deu a Dahmer o lugar todo especial em que ele criou e procriou suas tiras: os anos 2000 e a internet. A série “Quadrinhos dos anos 10” também vem da internet para o livro, como o autor aprendeu a trabalhar e onde cresceu com e junto ao público. Mas, folheando o livro, com uma edição quase invisível da Cia das Letras (o que é de se louvar sempre), a textura do papel pólen deixa mais delicado e vivo o desenho em que Dahmer varia a densidade dos pincéis, brinca até com aquarelas. Como sempre, ele nem precisa assinar para a gente reconhecer suas tiras, as conversas estranhas entre os donos do mundo (todos brancos, homens) e seus filhos perdidos.

É a série mais metalinguística de Dahmer, que após quase dez anos vivendo em caixinhas virtuais, conhece muito bem esse mundo, e suas tiras pessimistas ainda ajudam a rir e a chorar de tudo. Uma das primeiras tiras da série, sobre “conteúdo na internet”, ridiculariza a produção em massa de informação desnecessária. O final do livro tem as tiras mais poeminhas (a tira pro Dahmer é um haikai, ele já disse), como a que contrasta “a banana do seu neto/a laranja da sua esposa/o amigo do seu filho” com produtos embalados e o evidente celular, ou “na casa do vovô ainda tem telefone fixo/tocador de CD/televisão”. Ou a ilustração das redes sociais Tinder, Twitter e Facebook, que viram estabelecimentos diferentes (um motel, um hotel e uma pousadinha) no desenho. Ali, há a habilidade do desenho que se soma ao texto mínimo. As metáforas desenhadas, como o carrinho nascendo de São Paulo, o homem que quer consertar o mundo com uma chave de boca gigante, ou os diabinhos nos cubículos do inferno, são imagens extremamente potentes com textos que às vezes até desaparecem no colorido delicado, no traço mínimo, mesmo se a tipografia nova da série é bem mais marcada que a tradicional Verdana. Contando esse passado presente dos anos 10, André Dahmer optou por um desenho mais palatável que os tracinhos crus do malvadinho. Assim como a internet nos faz engolir muito mais sapos cotidianos quando eles vêm acompanhados de gatinhos.

 

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

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