No dia em que comecei a escrever esse textinho aqui, chegou o anúncio de André Dahmer de abandonar os seus personagens Malvados, protagonistas de uma das primeiras e mais importantes webcomics de nosso país e século.
O site mudou pouco nos quase 20 anos no ar: em preto e branco (afora as propagandas adicionadas há algum tempo), o layout fixo em que se indica o nome da série, o número da tira, uma frase aleatoriamente repetida no topo, uma palavra-chave para o Google.

A série das florzinhas cínicas – uma das descrições mais usuais dos bonequinhos repetidos pelas tiras, que só mudavam em geral o texto – casou muito bem com a internet discada dos anos 2000: pouco “peso” para carregar, leitura rápida e ancorada em assuntos atuais. Segundo Dahmer contou na mesa-redonda “Os melhores quadrinhos do século XXI”, que organizei em 2010 (!) na Médiathèque da Maison de France (hoje Casa da Europa), no Rio de Janeiro, ele testava da seguinte forma a qualidade das tiras: ia na casa de um amigo que entendia melhor de internet postar no site, pegava a bicicleta até em casa e via se aparecia na tela do computador dele.

Uma das diferenças que mais senti no site atual foi a ausência do blogroll. Surgida em 2001, nos primórdios do uso da expressão “com o advento da Internet”, a lista de outros blogs e sites amigos foi o que permitiu muita gente descobrir outros autores e a outros autores de serem descobertos. Em uma era pré redessociais, os blogs funcionavam de hub para outros, ali se indicava as referências e relações. Além de sua lista de sites favoritos, o próprio autor comentava vez ou outra novos autores. Foi por ali que muita gente conheceu Allan Sieber, Clarinha Gomes e Raphael Salimena, por exemplo – o primeiro já publicando livros e revistas e os dois outros então iniciantes.
Em 2010, quando fizemos o tal balanço da aurora do século na Maison, o Orkut já tinha reunido grupos de autores e alavancado revistas. O título da mesa era uma referência direta à série “Quadrinhos dos anos 10” que Dahmer publicava já em 2009.

As webcomics tiveram um papel importante na nossa formação enquanto leitores de internet. Na era dos fóruns, do MIRC, passando pelos grupos do Yahoo (declarados mortos em dezembro de 2019) ao Orkut, as pessoas passaram a se encontrar pelas leituras afins, a se isolar em bolhas para além do espaço geográfico que habitavam. Isso mudou enormemente a forma de se relacionar, entre amigos e também com autores. As cartas para o jornal passaram a ser publicadas todas, ao mesmo tempo, até se perder de vista.

(Aliás, vale atualizar o exercício do Érico: o Jiro não está mais na área para concorrer a títulos honoris causa; Bill Waterson publicou um desenhinho para o Festival de Angoulême; as campanhas contra gibis continuam, infelizmente; quadrinhos estão, sim, em toda parte, mas os artistas continuam sem remuneração adequada. Laerte é figura de proa, e deveria se candidatar a prefeita esse ano.)
E voltamos a tira que abre esse texto: a internet modificou profundamente nossa cognição, mas ficamos cada vez mais alienados dos mecanismos que nos levam a certas escolhas de conteúdo.
A internet nasce numa infraestrutura econômica que ela mantém invisível, aparecendo como um ambiente universal de informação e comunicação globalmente uniforme. Ora, nossa experiência reticular está circunscrita a um número restrito de programas aplicativos que permitem as múltiplas operações desejadas em um número limitado de gestos previstos e uniformes em todo o planeta, sem que tenhamos a menor ideia do que são e significam os protocolos informáticos que empregamos. Ignoramos os procedimentos operatórios que a criaram e a conservam, as leis de sua formação e configuração, sua arquitetura funcional. Por isso, não é possível celebrar as redes sociais como libertárias em si e por si mesmas, dispensando as mediações políticas.
Marilena Chauí em entrevista para a Revista Cult, 2013.
Hoje, mais do que nunca, é difícil saber se foi o algoritmo ou o zeitgeist que nos trouxe certas coincidências. E, muitas das vezes, o criador de conteúdo acaba desaparecendo ante a torrente de cópias de sua produção original. Apaga-se o produtor, assim como se apaga a ideia de que esse conteúdo é um produto, uma criação, e não geração espontânea da internet. Essa questão da autoria é importante para entendermos os mecanismos de toda a indústria, que se apropria da força de trabalho, ocultando que são pessoas que as fazem, “esquecendo” que elas devem ser bem remuneradas, que elas um dia vão se aposentar, ou ficar doentes. Ou seja, é a velha lógica do capital ainda mais calhorda nos chegando feito “mágica” no celular diminuto (que esconde todas as mãozinhas infantis que o montaram).
2001 e Malvados foi o início de uma odisseia importante que alterou profundamente as histórias em quadrinhos brasileiros. E ao mesmo tempo em que embarcava sabiamente nesse meio, André fez dele palco para uma metacrítica. Não foi apenas a facilidade de acesso que o fez estourar: ele sempre nos lembrava das questões do capital, aliás, nos alertava sobre o mundo calhorda à nossa volta. Em debates e mesas, André Dahmer sempre desviava do assunto dos quadrinhos para tentar sacudir nós, “jovens”, sobre questões fundamentais.
Mundo agora, a efusividade dos webcomics também foi grande, porém, com nossa cena editorial sempre fragmentada (cf. Marisa Lajolo e Regina Zilberman, A formação da leitura no Brasil, ed. UNESP), a publicação na internet se transformou em forma majoritária de alcance do público. As revistas e as feiras só iriam se sedimentar no final da década (e elas serão lembradas nos próximos capítulos dessa série).
Muita coisa mudou e muita coisa não mudou nessas duas décadas. Em 2003 descobri o “truque” de ir manualmente no link e ir colocando os números, e ia em ordem para “zerar” os Malvados, que tinha acabado de conhecer. Hoje, as redes do autor de Malvados publicam basicamente suas tiras e notícias de publicações, eventos, e há pouca interação com os leitores (500 mil seguidores só no Twitter), poucas referências a outros autores são difundidas, mas seu alcance continua gigante. Fui procurar a primeira tira do site. Por mais que os terraplanistas queiram negar as evidências, o mundo dá voltas, e sacode quem ficar pela frente. E como o Malvadão, também pergunto: “tem morfina aí?”

Um comentário em “[Bartheman] “No meu tempo…” ou: os melhores quadrinhos da primeira década do século XXI”