
Desde os tempos imemoriais, o fabuloso nos ajuda a contornar a crueza do mundo. Castanha do Pará é uma colcha de fatos tristes, a história de um menino triste, costurada com as cores fabulosas de Belém do Pará, uma grande cidade em meio à floresta mágica da Amazônia.
Para além de todo o fascínio que as bandas do Norte exercem sobre os incautos do Sul, esse livro traz uma história urbana, com o mais urbano dos bichos da nossa fauna, um urubu, só que um urubu-menino. Mas o tom da narradora e o vocabulário dos personagens vão dando a dimensão pitoresca da história, como nas grandes narrativas brasileiras em que a cor local dá sabor único. Afinal, é um menino que dorme sob as barracas do Ver-o-Peso, maior mercado da capital do Pará, cheirando a tucupi, jambu, pupunha, açaí, filhote frito, cerveja, mijo e chuva, mas que sonha com o que vê na TV, Jaspion, Mara, futebol e Chapolin Colorado.
A narradora nos convida a ouvir uma história, que ela nunca começa a contar de verdade: a logorreia banal das vizinhas solitárias que se satisfazem com o voyeurismo da miséria alheia. E a história é ouvida no tempo da chuva, essa grande regente da vida dentro da floresta amazônica; quando é hora da chuva, não adianta ter pressa, é preciso esperar que o rio desabe sobre a cidade, todos os dias, em horários que só a chuva sabe.
Gidalti Jr. conseguiu alinhavar o hiperrealismo do desenho, a realidade chocante da história com o fantástico – expresso tanto pela imagem dos personagens adolescentes (animalizados, quase todos), quanto por alguns momentos da narrativa, entre o delírio alucinado pela droga ou pela fome do menino. O fantástico também está nas cores, em que ele literalmente dilui o realismo do traço, que também é perturbado pelas onomatopeias vibrantes.

Ao mesmo tempo, é uma realidade dura, a do menino, de sua mãe e de sua avó, que é diluída pelo fantástico da história – ou da cola que ele vai procurar pelas ruas do centro de Belém. A história se passa nos anos 1990, uma década que viveu das sobras do pior dos anos 1980. Pelas páginas de Castanha do Pará, é possível reconhecer ruas com edifícios da virada do século XIX para o XX, ainda esperando toda a glória do látex: dessas cidades brasileiras que nascem para logo virar ruína, bebendo toda a promessa de futuro.

Castanha do Pará consegue reunir muitos efeitos comuns às narrativas bem brasileiras, sem pesar no tom, que parece de fato perfeito para esse primeiro Prêmio Jabuti de quadrinhos. Vem da tradição hiperrealista de Quintanilha e D’Salete, mas Gidalti conseguiu algo só seu, que foi, justamente, o retorno à tradição da literatura fantástica latino-americana, e o uso das cores exuberantes que nos remetem diretamente ao pitoresco Pará. E é, enfim, uma narrativa importante pela temática, e ainda nos deixa a história aberta, confiando no imaginário do leitor.
Um dia antes de visitar meu amigo Lobo, editor do livro, vi desses artesãos de rua vendendo formiguinhas de semente e arame pelo Pelourinho. Apontei para uma, quis saber o preço, só para não chegar de mãos vazias na casa do amigo, mas trazer, literalmente, algo mínimo como uma formiguinha. O senhor me explica que era feita de semente de castanha do Pará. Fazia uma semana do anúncio do Prêmio, e me arrepiei. Levantei o rosto para encarar o senhorzinho, com um sotaque que nunca reconheceria, mesmo se Belém é minha conhecida. A gente se surpreende com os pedacinhos de pedaços de Brasil em que se tropeça em outros lugares, como essa semente que veio parar na Bahia. Gidalti, nascido em Minas Gerais e crescido em Belém, tentou nos trazer alguns desses cacos de Brasil em um livro em quadrinhos. Não é todo o dia que a gente tem a chance de fazer viagens assim, muito menos com um guia de olhar tão apaixonado. Parabéns pelo Jabuti. 🙂
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