Esses dias eu li o livro Super-Homem e o romantismo de aço, do Rogério de Campos, e fiquei ruminando algumas coisas. A partir da análise do personagem do título, o livro procura entender e faz uma abordagem bem crítica dos super-heróis enquanto fenômeno cultural.
[…] consigo entender o amigo que coleciona gibis do Superman e consigo até entender os fã-clubes do personagem, o que me parece estranho é a dimensão atingida pelo culto a personagens como ele. Como uma subcultura juvenil que parecia condenada ao desaparecimento transforma-se na cultura dominante de nosso tempo?
(Rogério de Campos, Super-Homem e o romantismo de aço, p. 31.)
Além de toda sua experiência de mais três décadas editando e escrevendo sobre quadrinhos no Brasil, Rogério complementa suas reflexões com textos de autores como Umberto Eco, Marshall McLuhan e Gerard Jones. Esses autores afirmam que:
- A fantasia do super-herói, especialmente o Superman, aliena o leitor e reforça valores e ideologias hegemônicas, como a sacralização da propriedade privada e a submissão às autoridades e instituições (do artigo O Mito de Superman do livro Apocalípticos e Integrados de Umberto Eco).
- As ações do Super-Homem são brutais e autoritárias e a violência de suas histórias serve como catarse para frustrações dos leitores. A idealização de caráter confere ao personagem uma aura quase “angelical” que encobre sua natureza fascista (do livro The Mechanical Bride: Folklore of Industrial Man, de Marshall McLuhan).
- Harry Donnenfeld editou a primeira aparição do Super-Homem nos quadrinhos. Ele tinha trabalhado anteriormente com revistas pulp eróticas, tinha relações com a máfia e com o tráfico de bebidas durante a Lei Seca. Chamado de “malandro”, sua figura é usada pra destacar o clima de marginalidade em que surgiram as primeiras revistas de super-heróis (do livro Homens do Amanhã: Geeks, Gângsters e o Nascimento dos Gibis, de Gerard Jones).

Essas considerações são feitas a partir de fatos e de elementos encontrados nas histórias em quadrinhos e constituem uma posição crítica aos super-heróis como produto cultural. Posição que é compartilhada e endossada pelo venerado Alan Moore. “É uma catástrofe cultural”, diz o barbudo, citado na página 31 do Super-Homem e o romantismo de aço. E na página 32, o rouxinol de Northampton desenvolve:
Tenho a impressão que o atual tsunami de filmes de super-heróis norte-americanos não faz nada bem à nossa cultura. É importante notar que em 2016, ano em que a Grã-Bretanha votou no “Brexit” e que a América elegeu o que parece um bufão nazi, seis das doze maiores bilheterias são filmes de super-heróis. São más notícias para a cultura. Temos essa infantilização, essa recusa em crescer, recusa de assumir as responsabilidades do mundo adulto, em que todos vivemos. Sim, vivemos em um mundo complicado e isso assusta, não queremos admitir que agora somos a geração encarregada do mundo. Assim nos refugiamos nessas fantasias de poder que odeio desde que deixei a infância e que agora me parecem tóxicas e perigosas porque estão danificando a cultura e a imaginação humana. Creio que poderíamos descrevê-las como a supremacia branca dos sonhos da raça dominante.
Alan Moore
(Você pode conferir na íntegra todo o contexto original dessa citação aqui.)

Super-Homem e o romantismo de aço tem 54 páginas e seus argumentos são desenvolvidos com muito mais detalhamento e profundidade do que pude fazer aqui. Acredito que a posição crítica do livro, se não concorda totalmente, no mínimo está em sintonia com as palavras de Alan Moore. Super-heróis são “fantasias de poder infantis, tóxicas e perigosas que estão danificando a cultura e imaginação humana”. Ponto.
Tem muitas coisas que eu gostaria de discutir, mas por causa do tempo e do espaço, vou me concentrar apenas nessas citações do Moore pra colaborar um pouco com essa conversa.
Diz o senhor Moore: super-heróis são uma catástrofe cultural. Super-heróis fazem mal para nossa cultura.
Mas por que, Alan?
Em 2016 a Grã-Bretanha votou no “Brexit” e a América elegeu o Trump. Nesse mesmo ano seis das doze maiores bilheterias foram filmes de super-heróis.
Tá, mas então você está estabelecendo uma relação entre esses fatos? Você quer dizer que as pessoas que votaram pelo Brexit e no Trump fizeram isso porque assistiram filmes de super-heróis? Ou o contrário? Porque, se essa relação existir, ela precisa ser mais bem explicada, não é?

Se relermos a declaração de Alan Moore, é evidente não está afirmando que as pessoas votam no Trump porque assistem filmes de super-heróis. Ele deixa isso pra gente deduzir sozinho. Não é como Frederic Wertham, que afirmou categoricamente, no seu adorável Seduction of Innocent, que ler gibis transformava crianças em gays e delinquentes . Não é a mesma coisa, mas, ao meu ver, é parecido. Desconfortavelmente parecido.
No prefácio de Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco relaciona os apocalípticos como aqueles que dissentem do padrão imposto pela indústria cultural de massas. Os integrados são os que não dissentem, aqueles que mergulham (ou chafurdam) nos produtos dessa indústria.
A imagem do Apocalipse ressalta dos textos SOBRE a cultura de massa; a imagem da integração emerge da leitura dos textos DA cultura de massa. Mas até que ponto não nos encontramos ante duas faces de um mesmo problema, e não representarão esses textos apocalípticos o mais sofisticado produto oferecido ao consumo de massa?
(Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados, p. 9)
Moore fala mal dos super-heróis e é repercutido pela mídia. É consumido, é discutido por leitores de quadrinhos que concordam ou discordam dele. Em si, a fala de Moore, seu vídeo, seus memes, são produtos que circulam e fazem parte do circuito que ele critica. Do mesmo modo, Frederic Wertham e seu livro permanecem na memória e na cultura das histórias em quadrinhos, assim como as queimas de gibis.
E dizem: “os super-heróis fazem mal para nossa cultura”.

Mas qual é a nossa cultura? O que é nossa cultura? Faz mais sentido falar em cultura ou em culturas?
Tem uma penca de gente que dedicou a vida inteira pra essas perguntas. O próprio Umberto Eco, pra começar. Mas você pode gostar de ler também Raymond Williams, Stuart Hall, Clifford Geertz, Frederic Jameson, Néstor-García Canclini e Jesús Martin-Barbero. Só pra citar os poucos que eu conheço, porque tem muita gente por aí com muitas ideias a respeito da tal cultura. E acredito que a maioria dessas pessoas vai concordar que “cultura” é um termo difícil e complexo.
Podemos considerar como cultura nossas produções literárias, artísticas, teatrais. Nossas festas, nossos feriados, nossas culinárias. Nossas ideias comuns a respeito da vida, nosso jeito de fazer as coisas cotidianas, nosso modo de nos relacionar uns com os outros. Cumprimentos, machismo, música, futebol. Tudo isso e muito mais cabe no bonde da cultura.
A cultura é totalmente indissociável de nossa sociedade e de nossa própria identidade (ou identidades, se preferir). A sociedade faz cultura e essa mesma cultura constitui a sociedade. Não é um conceito homogêneo e harmonioso, muito pelo contrário, é infestado de diversidade, contradições, disputas e tensões. Como eu disse, difícil e complexo.
Ainda dentro do tema cultura, é bem conhecida a velha briga entre “alta e baixa cultura”. A cultura “boa”, refinada, elegante, enriquecedora do espírito humano versus a cultura “ruim”, massificada, massificante, industrializada, opressora, alienante e conformista.

E os super-heróis?
Os super-heróis, como qualquer outra produção cultural, devem ser problematizados e existem muitos elementos nesse tipo de gibi que corroboram aspectos fascistas, doutrinadores, etc. Mas se realmente queremos entender melhor o sucesso dos filmes de super-heróis ou a longevidade da popularidade desse Super-Homem ou a relação entre esses super-heróis e a nossa sociedade, penso que devemos ir um pouco além de listar os aspectos nocivos desse produto.
Super-heróis são fascistas, egoístas, infantis na pior acepção do termo.
Então porque fazem sucesso? Porque as pessoas se identificam, consomem, pagam pra ver o mesmo filme duas, três vezes? Essas pessoas são fascistas também? São burras? O mundo está perdido? Apocalipse?

Acho importante lembrar que, durante a década de 80, os filmes de brucutus norte-americanos faziam muito sucesso ao mostrar esses protagonistas levando violência, liberdade, morte e democracia para todos e todas ao redor do globo.
Acredito que criticar apenas os super-heróis é meio incompleto, porque os super-heróis são apenas um spin-off, uma nova variação dessa estrutura do protagonista macho alfa fodão branco hétero perfeito que circula pela indústria cultural desde sempre.
Do mesmo modo que criticamos a violência e unilateralidade dos super-heróis, podemos criticar o modelo geral de protagonismo, a jornada do herói, o formato que incute a ideia de que, sozinhos, somos os protagonistas e devemos sempre buscar a vitória. Vitória que geralmente é uma conquista, a derrota de um adversário, a submissão de um interesse amoroso…
Ao mesmo tempo, essa busca pela “vitória” também incute uma profunda internalização das “regras do jogo”: as leis, as autoridades, a hierarquia, a propriedade, o esforço que será recompensado por merecimento, a ideia de “certo” e “errado”.
Quantas obras literárias ou cinematográficas reproduzem essa estrutura? Essa estrutura é nociva? Como isso se relaciona com nossa sociedade? E quando temos personagens como Kamala Khan? Ela também reitera essa cultura fascista? Do mesmo modo? Essas perguntas e outras podem ajudar a pensar melhor o assunto.

Agora, especificamente falando sobre “super-heróis fazerem mal para a nossa cultura”, gostaria de citar outra declaração de Alan Moore. Presente no documentário The Mindscape of Alan Moore, essa fala é sobre a infância do autor, filho de uma família operária e pobre:
Eu me encontrava rodeado por um mundo monocromático com oportunidades limitadas. A única janela para fora daquele mundo restrito eram os contos de mitologia que eu lia, ou as brilhantes histórias de super-heróis em quatro cores. Aventuras de pessoas que não tinham restrições, pessoas que podiam voar sobre os tetos das casas, pessoas que podiam se tornar invisíveis. Esta foi uma chave muito importante para uma porta muito importante que me abriu as perspectivas da imaginação com as quais eu podia finalmente transcender e escapar das limitações das minhas origens.
Alan Moore
(O momento exato dessa fala dentro de The Mindscape of Alan Moore está aqui).
Além dos super-heróis, a formação de Alan Moore foi marcada não só por outras leituras e experiências como também por uma aguda percepção das diferenças de classe, das relações de poder, das diversas ideologias que uma pessoa (ou personagem) pode assumir. Entenda ideologia aqui como o conjunto de valores e conceitos com o qual a pessoa constrói sua visão de mundo.
Tudo isso aparece nos seus trabalhos mais marcantes da década de 1980, a maioria esmagadora sobre super-heróis: V de Vingança, Watchmen, Miracleman e etc. Nesse período, Alan Moore foi lesado, enganado e alienado de sua produção criativa pela indústria de super-heróis. Eu entendo e apoio as críticas dele ao mercado e à indústria dos comic books.
Entretanto, acredito que afirmar que “super-heróis fazem mal pra cultura” e sugerir que o sucesso de um filme tem relação com a eleição de uma besta para um cargo político é uma afirmação um bocadinho apressada. Dá vazão pra uma série de frustrações e rancores que ele tem, mas é um argumento equivocado. Afirmar que super-heróis fazem mal pra cultura não é mais verdadeiro ou mais útil do que afirmar que o funk ou videogames fazem mal pra cultura. Ou, citando outro pensador da cultura:

Lógico que Alan Moore não está interessado em fazer um tratado sobre cultura e super-heróis. Ele não é obrigado a incluir em seu discurso as ideias que estou apresentando aqui. Ele tem sua posição e seus motivos. Mas a relação da violência e fascismo da nossa realidade com a circulação dos super-heróis em filmes e gibis precisa ser, no mínimo, mais bem explicada.
Outra coisa que incomoda é que esse tipo de discurso às vezes deixa subentendido que gostar de super-heróis é algo relacionado com um tipo de estupidez, de incapacidade crítica, de passividade. Essa é a característica das massas, da multidão. Um mar de zumbis manipulados que batem palmas pra esses filmes, que fazem as grandes bilheterias de Vingadores e Transformers. Esse discurso não é nada diferente daquele dos apocalípticos de Umberto Eco.
Os termos “massa” e “multidão” referem-se a um grupo de pessoas diversas, que não são passivas, não são estúpidas. O problema do conceito de “massa” é que ele encobre todas as diferenças, e peculiaridades e acaba produzindo narrativas que falham em explicar tanto a cultura quanto a sociedade. Raymond Williams desenvolve essa ideia muito bem em seus livros.
Acredito que se há uma honesta intenção for entender melhor o fenômeno, a cultura, seria justo considerar, além dos aspecto fascistas, autoritários e violentos, também os aspectos de altruísmo, de contato humano, de empatia. Afinal, se as pessoas ainda estão lendo super-heróis, se elas estão assistindo esses filmes, é porque provavelmente estão encontrando algo neles além de uma cartilha fascista.
