Esses dias participei de evento do Itaú Cultural sobre crítica de quadrinhos, ao lado dos colegas Alexandre Linck e Érico Assis, com a mediação da Gabriela Borges.
Tem um tempinho bom que escrevi sobre a crítica e os quadrinhos, para a Antílope. O texto está aqui, e foi fruto de uma pergunta que os editores faziam, naquela época: Será que existe crítica de quadrinhos no Brasil? A gente já tinha bastante massa crítica: um grupo de pessoas formando e alimentando discursos sobre e em torno dos quadrinhos. Como discuto no texto, a ideia que se imagina do crítico seria aquela pessoa que “separa o joio do trigo”. É uma forma possível de se fazer crítica, mas não única. A crítica que parecia faltar era aquela que vai discorrer de maneira mais argumentativa e menos descritiva seus objetos. Uma elaboração mais aprofundada, e com menos intenção de divulgação, avaliação ou de indicação de títulos.
Uma diferença que sempre foi pensada aqui para o Balbúrdia é que os textos deveriam ter estilo, nesse sentido de que os autores se colocassem nele, e que o trabalhassem para ser também uma forma interessante. Vou dar um exemplo bem claro: antes, Lielson e Liber, fundadores do Balbúrdia, escreviam para o Universo HQ, em que se pedia textos mais objetivos e sem recorrer à primeira pessoa. É uma opção de ser jornalístico, ou seja, de produzir uma leitura factual dos objetos, e um compromisso em reportar o tempo. Quando Liber e Lielson optaram, desde o editorial, em textos com estilo, optaram pela leitura mais subjetiva, de inferências múltiplas a partir dos títulos lidos. Em uma tentativa de produzir também objetos perenes no tempo. Não é pensado um compromisso com o atual, com o que está acontecendo, com reportar esse tempo – mas, sim, refletir sobre o que configura esse atual. Nesse sentido, mesmo títulos do passado podem ser evocados para entender nosso tempo. Mas aí não se reporta o fato, pensa-se sobre ele.
As diferenças entre a resenha e ensaio crítico são bem fluidas e se misturam bastante (vide as seções resenhas e ensaios de Rascunho, Quatro Cinco Um, Suplemento Pernambuco, Serrote; ora textos descrevendo os títulos, ora partindo deles para divagações, embora a Serrote seja a “revista de ensaios” e 451 de “resenhas”). As colunas do “Vem comigo”, por exemplo, são mais do gênero resenha, até. Estamos tentando um trabalho de certa divulgação no Instagram, comentando os livros recebidos pelo Balbúrdia e que ainda serão lidos e digeridos na forma de textos. Não há muita crítica elaborada ali, só um comentário em agradecimento. Assim, é feito um registro de tempo, mas não necessariamente uma discussão ou debate que o título provoque.
Um modelo de crítico que sempre almejei é o barthesiano – tanto que o nome dessa coluna é em homenagem ao Rolã Bart’ (aliás, tem um ensaio acadêmico meu e da minha orientanda Lauren Nascimento sobre ele que acaba de sair). Para o Barthes, ideia de crítica é a de uma escrita que segunda o seu objeto, pensa a sua forma, mas também entende seu contexto no mundo – todo objeto humano é histórico. Assim, já na primeira coluna aqui, comentei sobre pensar os efeitos que podemos tentar analisar a partir de cada quadrinho (como a narrativa se dá, como sua forma se constitui, como ele aborda o mundo). Da mesma forma que a gente entende que todo objeto cultural está imerso em um contexto histórico (e, assim, prenhe da ideologia dominante), obviamente essa crítica também está imersa em seu contexto de produção. Então, cada sujeito que escreve determina suas ferramentas, ou seja, suas filiações teóricas e culturais que vão ajudar na sua análise. E, obviamente, toda leitura é entranhada das leituras de cada sujeito e, portanto, está sujeita à seus maneirismos e manias; não há como fugir à ideologia – tanto que o Barthes diz que ideologia dominante é pleonasmo. A compreensão dele, de ideologia, é do conjunto de discursos que tendem a naturalizar hábitos e costumes. E são elementos que, muitas vezes, escapam àquele que produz o texto, tanto que, um dos objetivos da crítica, seria o de tentar perceber de que forma um objeto artístico apresenta preconceitos, lugares-comuns, se adere aos discursos dominantes ou se os confronta.
Obviamente, essa multiplicidade de textos sobre textos é positiva. É importante, inclusive, que haja resenhas e ensaios que se desdigam: é pelas contradições que a gente conhece o mundo. Um outro autor por quem tenho crush eterno, o Georges Didi-Huberman, lembra que posicionar-se é criar conhecimento. É pela justaposição de elementos que nós selecionamos para um texto (é, o texto também é feito de justaposições, como toda arte sequencial) que as ideias são elaboradas, umas contra as outras. Também o leitor, ao comparar esses diferentes textos sobre objetos artísticos, junto a suas leituras prévias e desejos, é capaz de elaborar sua síntese sobre aquele objeto discutido.
Um problema é quando esses múltiplos textos falam a mesma coisa ou têm o único objetivo de fazer clicar no link para a loja mais perversa do mundo. E sobre a crítica “negativa”, é bom lembrar o que um dos pensadores da chamada “teoria crítica” vai explicar porque comenta sobre os títulos que ele não gosta:
… quanto mais a maior parte dos filmes de opereta, dos filmes militares, das comédias, etc. são pobres em conteúdos que mereçam um julgamento de ordem estritamente estético, mais peso adquirem do ponto de vista de seus significados sociais – o que não pode ser subestimado de modo algum. Qualquer lugarejo hoje tem seu cinema e, por vários canais, qualquer filme mais ou menos viável chega às massas, na cidade ou no campo. O que o filme transmite a este público de massa e em que sentido o influencia? Estas são as questões capitais que o observador responsável deve colocar às produções medianas.
(Über die Aufgabe des Filmkritikers. Originalmente publicado na Frankfurter Zeitung, 23/05/1932. Republicado in KRACAUER, S. Schriften. Band 6-3. Frankfurt aM: Suhrkamp, 2004, pp.61-63. Traduzido por Adilson Mendes e revisto por Carlos Eduardo Jordão Machado, meus grifos)
Assim, pensando no sentido do Krakauerzão da massa, o interessante de se avaliar os efeitos de um filme ruim é para entender como se produz e distribui os valores transmitidos pelo objeto.
Aliás, sobre julgar uma obra, a ideia de se ater à matéria do objeto é de não cair em juízo íntimo de valor, não ficar na superfície do meu ego para dizer o que gosto/o que não gosto, ou na simplicidade do é bom vs. é ruim. Partindo do princípio de que vou priorizar obras de que gosto, tento entender, pelos meus textos, porque aquele objeto tem tal efeito sobre mim. Analisá-lo (talvez também psicanalisar-me), mas tentar confrontar esse objeto com meu texto e outras leituras, e ir além de mim mesma. Em suma, nesse contexto, ao evitar imprimir apenas indicações subjetivas de títulos, prefiro o pensamento crítico dessa tradição, em que não se esquece que falamos sempre de si quando falamos, mas se tenta entender as relações daquele objeto no mundo.
Voltando ao texto de 2013, parece que muita coisa mudou, mas a pergunta continua por aí. Como o Lielson escreveu pra Plaf nº 6, já existe crítica sim, obrigado. O Balbúrdia está aí desde 2016, mas não somos os únicos. Tem o trabalho há mais tempo ainda do próprio Érico Assis e seus ensaios, do próprio Linck, a Raio Laser (aliás, acaba de sair o livro do Ciro com seus textos para o Metrópoles), O Quadro e o Risco, Ramon Vitral (que foca no jornalismo, tem uns ensaios críticos de tirar o fôlego, é só ver sua coluna no Itaú) etc. Nem sou tão extremista quanto o querido crítico português Pedro Moura que, em sua palestra na des.gráfica de 2017, afirmou que o texto crítico só pode ser escrito. Um dos ensaios mais bonitos que já vi é o “Leveza” do Greg News, exemplo perfeito de texto potente. Só não consumo muitos vídeos, pero imagino que existam outros bons youtubers críticos nesse modo mais ensaio, menos divulgação [edit: Tem o Kitinete HQ do parceiro Liber e Scama!!! Sim, eles também fazer vídeos densos discutindo os livros. Gosto muito de um vídeo do Scama sobre Berlim]. Aí pergunto a vocês, que críticos em texto e vídeo vocês curtem, e por quê?

Muito bom, Maria Clara! Discordo em partes da ideia de crítica do Barthes, mas compartilho o crush pelo Didi-Huberman e sua noção de crítica. Aliás, nesse sentido, acho que sou um alemão perdido dos anos 1920, entre Walter Benjamin e Aby Warburg, lendo Nietzsche.
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