“Não fazer nada, olhar a grama crescer. Deixar-se levar pelo curso do tempo: fazer um café, tomar um copo d’água…
Fazer de sua vida um domingo.”
(R.B.)
A verdade, na verdade, é que este texto deveria ter ficado pronto em janeiro. Poderia dizer que o ano só começa na terceira semana útil depois do carnaval, mas a verdade é que “peccavi nimis cogitatione verbo, et otium: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”. Mas, finalmente, depois de tanto adiamento, vão aqui alguns pensamentos embaralhados, um tanto fragmentados, sobre a minha lista preparada para o Prêmio Grampo 2017.
Pois é sob o signo do ócio que inauguro essa nova coluna, voltada para meus textos mais ensainho, enquanto a 1, 2, 3… já continuará sendo em torno do OuBaPo.
“Ousemos ser preguiçosos”, disse o Roland Barthes, certa vez, invocando esse tempo perdido que serve a soltar as lembranças, ou a decantar toda a leitura e paisagem que o olho bebe. Que não é sob o calor do momento que me proponho dar nenhuma análise ou opinião.
Em Bartheman tomo de volta minhas escritas hedonistas, excessivas, quiçá poeminhas, pura exibição de texto e desse ego que busca o puro gozo preguiçoso da leitura.
Desde o primeiro Grampo, sempre me propus a fazer uma lista não apenas minha, mas que abrangesse livros que acho importantes para aquele período. Não apenas no meu gosto pessoal, mas tento escolher, a partir das minhas noções de estética, obras que acredito serem representativas.
Assim, na minha lista não tem apenas obras publicadas em livro, mas zines, pelo menos um site, editoras diversas, autores conhecidos e outros nem tanto. Diferente do ano passado, não consegui equilibrar autoras e autores.
1) Ugrito #8 – A mediocrização dos Afetos (Ugra Press), por Fabiane Langona
2) Know-haole #4 (Vibe Tronxa Comix), por Diego Gerlach;
3) Você é um Babaca, Bernardo (Mino), por Alexandre Lourenço;
4) Fixação por Insetos (Antílope), por DW Ribatski;
5) Jane, a Raposa, e Eu (WMF Martins Fontes), por Fanny Britt e Isabelle Arsenault;
6) Hinário Nacional (Veneta), por Marcello Quintanilha;
7) Ultralafa (independente), por Daniel Lafayette;
8) Topografias (Selo Piqui), por Taís Koshino, Julia Balthazar, Bárbara Malagoli, Lovelove6, Mariana Paraizo e Paula Puiupo;
9) Finório (Zarabatana), por Marco Oliveira;
10) Modelo Vivo (Boitempo), por Laerte.
Como participei da ~apuração~ dos votos, pude ser influenciada por todos. Muitos não entraram, mesmo sendo vedete: Desconstruindo Una – sobre o qual ainda pretendo escrever – e o campeão do ano, Buldogma. Não foi para ser do contra, mas é que pude ver os argumentos de meus colegas e pensar melhor sobre o que neles não batia com a minha régua íntima. Sim, porque o primeiro critério é o santo bater com o meu. Buldogma, por exemplo: é um livro completo, no sentido em que articula bem todos os seus elementos, amarra bem a narrativa, mas eu, simplesmente, não consegui percorrê-lo. O apuro referencial excessivo, as marcas, um virtuosismo intelectual interessantíssimo com o qual, por acaso, impliquei. Não vou conseguir me explicar aqui, mas apesar de gostar dos excessos em geral, impliquei desde o início. Talvez pelo hype. O desenho de WW é impressionante, a trama empolga. Mas não bateu. Prometo percorrê-lo com cuidado, Wagner.
O livro da Una, por outro lado, não entrou no meu rol por um segundo critério, puramente editorial: o prêmio é pensado a partir dessa profissionalização de mercado e produtores, portanto observo também o objeto-livro como é produzido. No caso desse livro, eu preferiria lê-lo em inglês, visto que a edição brasileira economizou justamente no texto dessa obra importante. Tendo trabalhado há algum tempo com tradução e com edição de quadrinhos, sei como é bastante complicado realizar um livro, sei como muitas coisas aparecem e precisam entrar em um cronograma louco, e por isso precisamos louvar as obras que, apesar de todas essas restrições, apresentam esse cuidado. O Prêmio Grampo também deve servir para demonstrar o trabalho não apenas do artista mas de todos os envolvidos que merecem parabéns: editores, preparadores de texto, revisores, diagramadores, capistas, vez ou outra tradutores.
O terceiro critério, nessa ordem aleatória, é dos efeitos do objeto que observo. E esses divido em três, estético, epistemológico e ético.
Digo o efeito estético do que observo pois não diria que são objetos que li, mas objetos que me deixaram muito tempo de olhos abertos, espreitando. E aí vem A mediocrizarão dos afetos no meu primeiro lugar. Olha pra ele: o Ugrito #8 bate logo nos olhos com esse jogo de formas heterogêneas disputando o papel. São as formas das letras, a grafia “à máquina” contra a letra redonda cheia de rabicós nos balões. O fundo preto como se fosse tinta de censor sendo iluminado pelas formas finas da tipografia ou pelo “corretor” branco. Não é um efeito pelo efeito, uma demonstração vazia da desenhista: as duas tipografias são duas vozes justificadas visualmente, pois se a linha manuscrita se compõe como parte do desenho, a linha tipografada nos lembra um texto-manifesto de um zine antigo. Parece encaixar-se perfeitamente no formatinho da coleção, parece evocar a ideia mesmo do zine (a colagem, o “feito à mão” de uma máquina vs. tipografia digital, ainda mais com o “liquid paper” aparente, o texto que urge para falar do hic et nunc). O apelo visual desse livrinho fala do livro, remete a ele mesmo. O melodrama da imagem também se contrasta com o texto conciso, salpicado de intervenções de um corretor sacana.
Efeito epistemológico é aquilo que a obra dá a conhecer, o que ela nos conta.
Prestem bem atenção, que esses dois primeiros efeitos não se confundem com as ordens de composição do quadrinho: há a ordem narrativa, aquela que supomos contar pela imagem e pelo texto, que transcende daquilo que lemos, e a ordem visual, aquela que é imanente, que só está ali para ser observada mas que não conta, necessariamente. Ou seja, a ordem narrativa desse quadrinho nos fala de amor, mas a ordem visual nos mostra a assinatura da Chiquinha de quem já conhecemos (seu traço), faz o jogo das tipografias que já mencionei, e é o que observamos e admiramos. O efeito epistemológico advém dessas duas ordens: no caso, é um manifesto sobre o amor grafado pela Fabiane Langona, a Chiquinha. Não vou entrar nesse tópico mais profundamente, porque queria me ater mais ao efeito estético e ao ético. Esse último: o efeito ético é sobre o que determinado objeto nos faz pensar sobre o mundo. Esse jogo pelas páginas da Mediocrização, nos faz pensar bastante sobre as relações sociais, sobretudo seu texto forte: “Assusta pensar um futuro onde os desejos, a desordem que nos motiva a buscar respostas resuma-se à superficial sensação de: como era bão.”
Nesse sentido, Know Haole #4 de Diego Gerlach prima por uma análise de nosso tempo pela via de um desenho e uma narrativa absurda: pois é impossível entender o que está acontecendo agora. Nele, tudo também casa, e são esses nós que me agradam. “Eduardo Cunha é o Bandido da Luz Vermelha”, trazendo imagens de Serra, Sandra Annenberg e teóricos sérvios da conspiração, em um cadinho político-cultural que, poxa, Gerlach, eu te amo. “É isso, é isso”: é o que dá vontade de dizer toda vez que o folheio.
Você é um babaca, Bernardo foi muito hypado também. Mas o desenho de Alexandre Lourenço me ganhou pelo minimalismo. É uma tara, confesso, pelo desenhinhozinho. E Bernardo ainda tem os textos que viram linhas, só locações de texto, significante sem significado verbal, deixa tanto espaço para quem lê. Pois tenho uma certa queda por esse feminino do texto, desse espaço, dessas lacunas, tão contrárias à tagarelice do quadrinho clássico. E digo tagarelice visual, também, aquilo que tudo mostra, sem que nos deixe imaginar. Jane, a Raposa, e Eu, de Fanny Britt e Isabelle Arsenault, além desse silêncio, dessa espera pelos olhos do leitor, também é feminino pelo tema, mas é como se o desenho já nos contasse isso pelo estilo da autora.
Os que seguem têm em comum a marca forte da assinatura desses autores: Fixação por Insetos, do DW Ribatski, Hinário Nacional, do Marcello Quintanilha e Ultralafa, do Daniel Lafayette. Por acompanhar há bastante tempo a obra dos três, ouso dizer que parecem ter chegado a um momento redondo de suas artes. Parece que nunca DW foi tão DW. Lafayette se mostra mais incisivo politicamente do que nunca, e não precisou ostentar suas cores para se fazer notar na série das moscas. Normalmente bastante colorido, à la Keith Haring, ele de repente passou a um minimalismo PB, e não deixou de ser o Ultralafa. Já Quintanilha trouxe, nesse livro, várias histórias tão bem encadeadas pelo aspecto visual e narrativo, mas refreando uma ideia de “grande trama”, reduzindo efeitos para deixar as imagens simples como as histórias que contam. E o resultado é daqueles de você pensar: que bonito. Para admirar as pessoas contadas, e quase se esquecer que tem um autor dessa obra.
Topografias, por outro lado, já é forte pelo seu aspecto de compêndio: antologia de artistas brasileiras que fazem quadrinhos. Estou me devendo há quatro anos um texto sobre o Selo Piqui, cujo calendário figura à minha frente e o primeiro zine comprei por acaso das mãos do Gabriel Góes na Rio Comicon 2011. É que tem algo no desenho delas que é preciso uma compreensão maior do que é o zine. Esse livro, por exemplo, traz uma história da Taís Koshino em que ela explora um tempo absurdo, mas todo o surreal é contestado pelas canetinhas de criança. Logo depois vem a linha apurada da Puiupo, seguida das colagens da Mariana Paraizo, num crescendo da grafiação* mais aparente à pseudo industrialização do desenho. Mas tem uma coisa que as meninas exageraram, isso foi golpe: a bicromia. Isso é praticamente assédio, toda vez que um artista se restringe a poucos elementos, é algo que me agrada. No caso, sair do PB para apostar no magenta e ciano… @_@ (isso é para significar olhos marejados).



Finório, do Marco Oliveira, por sua vez, é um livro. Um livro redondo, também, que se encerra ali. Uma história longa, e não estava acostumada com histórias longas do Marco, sempre com as boas tiras. E, diferentemente de boa parte dos outros citados, esse livro não tem um protocolo de leitura exigente, um iniciante nos quadrinhos consegue lê-lo. E isso é um feito importante em nosso universo bastante empolgado com o virtuosismo estético e nem tanto com a construção de roteiro e criação de público leitor. Ele consegue fazer isso e manter um nível importante de interesse de seu leitor, com apuro também no estilo claro. É uma obra atenciosa, além de boa.
Por fim, Modelo Vivo, da Laerte Coutinho. A autora é consagrada, e posso fingir que não vou dizer mais nada só porque “todos já disseram tanto”, mas não. Nunca é o suficiente, e não é apenas reverência retórica. Porque esse livro é importante? Ele reúne histórias mais longas, entremeadas de nus e tiras. Como falei anteriormente, o Prêmio Grampo também é para criar um parâmetro sobre a profissionalização desse setor. E a memória é um elemento importante para essa profissionalização, pois fomenta a solidificação do patrimônio cultural gerado pelos produtores da área. E reunir histórias lançadas há tanto tempo, que se tornaram referências para novos autores, é uma empreitada de preservação dessa memória, por conseguinte solidificação da história das histórias em quadrinhos. O livro do selo Barricada, da Boitempo, foi editado por ninguém menos que o Toninho Mendes, criador da antológica Circo Editorial, falecido esse ano. E a obra mescla esse “novo tempo”, dos nus de corpos comuns, de todos os corpos sob o olhar amoroso de Laerte a esse passado de importante massa corpórea em nossa memória. Pra não falar que é da Laerte.
Ass.:

* Preciso escrever sobre isso. Por enquanto, vai no Érico. Foi? Rá! Referência circular, né?
8 comentários em “[Bartheman] Minha lista grampo: obrigada por esperar”