O Grampo é a única lista que eu faço. Não tenho esse hábito. Já brinquei muito com isso, mas o meu coração já sofreu demais. Tenho dificuldades em hierarquizar as coisas que eu gosto (claro que tem coisas que você naturalmente prefere do que outras, mas em muitos casos, a competição é difícil), mudo de opinião sobre uma obra em relação a outra com certa frequência, leio, descubro, aprendo, releio e aprendo mais e os critérios mudam (#ContinueEstudando). Mas o Grampo tá aí, em toda sua glória, no segundo ano, e eu mentiria se dissesse que foi sofrido e que não foi divertido pacas, por isso espero sofrer com isso por muitos anos.
1 – Você é um babaca, Bernardo – Alexandre Romero
Não sei se ainda tenho muito a dizer sobre Você é um babaca, Bernardo. Muito do que eu penso tá na entrevista que eu fiz com o Alexandre Lourenço perto do fim de 2016. Acho que um dos pontos principais é que o cara fez um gibi no qual muitos quadrinistas e aspirantes podiam se espelhar. Pensou diferente, dentro das suas capacidades e fez um gibi exemplar, tanto em matéria de desenhos e cores quanto conceito, roteiro e narrativa. O Alexandre já tinha mostrado sensibilidade aprumada nas tiras do Robô esmaga, publicadas em formato físico em 2015 pela JBC, cheias de desejos escapistas, observações cotidianas, humor contido e sutil e experimentações narrativas e nos formatos das histórias. Isso tudo tá lá no Bernardo. Gosto em particular da relação que o Alexandre tem com o tempo e espaço nas histórias que conta. Ele tem uma visão muito clara de como fazer aparecer determinada nuance, de como mencionar a ideia que quer passar, geralmente relacionada ao humor do personagem, utilizando o tempo da HQ e o espaço nas páginas. O Brasil tá com uma bela gama de autores, mas ainda assim, poucos pensam a mídia como o Alexandre tem mostrado.
2 – Desconstruindo Una – Una (tradução: Carol Christo)
Pra mim, a publicação mais relevante do ano. Um gibi que todo mundo devia ler, mesmo quem não tem o hábito de ler quadrinhos. A Nemo já vinha fazendo um trabalho excelente ao publicar clássicos como Moebius (uma baita coleção maravilhosa), Bilal, Hugo Pratt, e a atitude de publicar com frequência quadrinhos de autoras tem sido certeira, com gibis como O muro, O enterro das minhas ex, Entre umas e outras (outra bela publicação de 2016), Bear e Gata garota. Com Desconstruindo Una, a editora traz ao Brasil uma obra sobre a discussão da violência de gênero e suas inúmeras ramificações em um momento pra lá de pertinente. Como gibi, Una é uma sequência de propostas narrativas que desmontam vários padrões estabelecidos, tanto de imagem quanto de texto, que, na HQ, possuem uma relação estética constante. É um gibi cheio de metáforas visuais (como a personagem principal carregando um balão de fala vazio, o peso do que nunca é expressado). O conteúdo é uma história que embala a discussão em si, com as experiências, suposições, falhas humanas (engraçado como o tipo de erro mostrado na história se torna caricato ao ser analisado anos depois. Poderia servir de lição, um alerta pra algumas coisas que AINDA são atuais), o pânico palpável do terror das possibilidades reais, o nó na garganta das declarações desacreditadas, dados assustadores, tudo prontinho, montadinho pra quem quiser ler. Ler e discutir. Ou melhor, ler e ouvir. Eu acho que isso é o mais importante no momento. Acho que é a ideia principal que faro fazer sobre Una. Nesta era na qual todo mundo tem acesso à cabeça de todo mundo e pontos de vista retrógrados se fazem muito mais presentes do que muitos de nós pensávamos, eu convido todo mundo que tem “certeza” de que “sabe de tudo”, a ler Una de mente aberta. Acho que as pessoas deviam analisar essas “certezas” e passar a desconfiar delas, especialmente ao serem desafiados por materiais (gibis, artigos, filmes, opiniões em geral) como este em questão. Já passou da hora de o pessoal perceber que a realidade é muito mais ampla do que o mundinho particular de cada um. Passou da hora de dar mais vazão a tolerância do que ao próprio ego, apontar dedos. Sair da bolha, tentar ver pelo olhar do outro, olhares com uma carga histórica que não pode ser negada, de perceber que o mundo é muito maior e mais variado do que se pensa. Isso é importante pra ler Una, é o melhor jeito de se absorver o que a obra propõe. Esteja aberto e seja mais tolerante. Una é uma obra potente que tem o poder de mudar ou, ao menos, sugerir novos pontos de vista. Se você estive aberto, é algo que pode te ajudar a crescer.
3 – Modelo vivo – Laerte
A Laerte é daquelas artistas que sinto certa dificuldade em expressar o impacto que me causa. Eu devia só escrever “Gibi da Laerte!” e pronto. Tudo meio que se resume a isso e justifica o investimento financeiro e de tempo. Modelo vivo é uma republicação e coletânea de várias histórias geniais da minha gênia dos quadrinhos preferida. As histórias são incríveis, com a investida da artista em vários estilos, intercaladas por páginas lindíssimas de desenhos de modelos vivos, produzidos em 2013, no decorrer de um curso livre. Laerte, a provocação viva. Só compra, vai.
4 – (Sem título) – Mariana Paraizo
Sobre o Alexandre Lourenço comentei que era um dos poucos que pensava quadrinhos de uma forma singular. A Mariana Paraizo é outra desses poucos. Desconstrução da narrativa, desconstrução temática, o gibi dela foge completamente do padrão de um gibi. A Mariana, a cada gibi que publica, mostra uma relação muito peculiar com a mídia (HQ, no caso). Me remete ao Hermeto Pascoal. Cada um em sua área, claro, mas falo do olhar amplo, uma clareza distinta de saber o que quer oferecer, a experimentação. Ela faz parte do seleto grupo que pensa quadrinhos de uma forma peculiar. Esteticamente, os desenhos a lápis conferem aquela impressão ainda mais artística ao quadrinho, com formas inacabadas, abertas no espaço, sem contar o acabamento artesanal da publicação. Um dos maiores destaques do ano nos quadrinhos nacionais.
5 – Sharaz-De – Sergio Toppi (tradução: Maria Clara Carneiro)
Eu sou fã do Toppi e já tinha lido Sharaz-De há alguns anos, então, quando li a notícia de que seria publicado no Brasil, sabia que a possibilidade de entrar na lista de melhores era, tipo, quase absoluta. Pra isso não acontecer, a edição teria que ser castigada na versão nacional, fosse na tradução, na parte gráfica, ou em qualquer outro aspecto. Não aconteceu, então, BUM, foi pra lista. Na real, a edição nacional tá uma teteia só, com a capa mais bonita que eu já vi pra publicação. Eu adoro os contos reimaginados pelo Toppi, mas é a arte dele, com os designs e layouts próprios, enormes e expressivos, já garantiriam a posição nos 10 melhores. Se você ainda não conhece o trampo dele, procura a coleção Um homem/Uma aventura, da EBAL. O nome da história é O homem do Nilo.
6 – A agência de viagens Lemming – José Carlos Fernandes
Mais um gibi de um cara de quem eu já era fã há um bom tempo e que eu já tinha quase certeza de que ia pra lista. Desde que li A pior banda do mundo, um quadrinho que eu amo, publicado no Brasil pela Devir, pirei no trampo do José Carlos Fernandes. Ele cria um mundo próprio, uma realidade absurda e surreal, com linguagem própria e humor singular, em qualquer gibi que faz. A publicação do A agência de viagens Lemming, também pela Devir, foi uma bela surpresa. A edição, horizontal, ficou linda, com um acabamento impecável e dá a oportunidade de se conferir o trabalho desse português genial aqui no Brasil.
7 – Sendero luminoso – Alfredo Villar, Luis Rossell, Jesús Cossio (tradução: Rogério de Campos e Bárbara Zocal)
Voltamos à seara de publicações relevantes do ano. Acho a leitura de uma obra sobre, entre outras coisas, divisão política, vital para os dias de hoje. O Sendero Luminoso começou como um grupo estudantil dissidente do partido comunista do peru e logo adotou a luta armada como prática, em resposta a anos de regime militar. As oposições se massacraram e massacraram também o povo, que sofreu os estilhaços de uma guerra da qual não optou por fazer parte. Parece familiar?
Eu acho a leitura do Sendero importante porque, como mencionei sobre Desconstruindo Una, te permite olhar de fora e de longe pra uma coisa que tá perto da gente. Você sabe como é, quando você tá envolvido em algo, nem sempre consegue ver tudo, é preciso um olhar de fora ou de alguém de fora, e é isso que o Sendero propicia. Também como Desconstruindo Una, sugiro que você leia este gibi desprovido de ego, sem qualquer noção pré-estabelecida (baseado, provavelmente, numa experiência limitada), sem dizer “É isso mesmo, tem que matar todo mundo!” ou “O povo tem que se fuder!” e veja o plano geral, perceba e analise a maneira como essa dicotomia respinga quando militarizada. É justamente o tipo de leitura que pode ensinar muitas coisas, inclusive humildade e a derrubada de muitas certezas frágeis, baseadas em um ponto de vista propenso a manipulação, falta de amplitude na visão e, principalmente, na falta de empatia ao próximo. Leia Sendero Luminoso sem se impor. Entenda que a maioria de nós tem muito mais a aprender do que a ensinar.
8 – Hinário nacional – Marcello Quintanilha
Quintanilha colecionando prêmios já não é surpresa pra ninguém. Por algum motivo (injustificável), achei que não fosse me impressionar tanto com Hinário nacional, juro que não sei por quê. Ainda bem que eu tava errado. Só histórias como “Ave Maria” e a forte “Pai Doce” já garantiriam uma posição nesta lista, mas o gibi inteiro é impecável. Dei uma resenhada (que não acho que faz jus a obra) no Hinário no meio do ano passado. Dá um bizu aqui.
9 – Os últimos dias de Pompeo – Andrea Pazienza (tradução: Michele Vartuli)
Só o fato de ser uma obra de renome que demorou trinta anos pra ser publicada aqui já valeria considerar uma posição na lista. Não é o critério definitivo, claro, mas é algo a se prestar atenção. Como a obra não se restringe a isso, como é um baita trabalho, com uma estética agressiva, paginações que vão da organização clássica ao caos entre imagem e texto e desenhos expressivos, soltos, despojados, em forte contraste preto e branco no nanquim, com um roteiro que é um bicho sem pele, um prenúncio e uma confissão de um artista usuário de drogas, conquistou uma posição. Não foi difícil. Uma obra tão ampla que, aliás, que pode abrir um debate sobre as definições de história em quadrinho.
10 – Know-Haole # 4 – Diego Gerlach
Zine, demente, maluco, agressivo, nojento, político, social, observador, zoador, hilário, bem amarrado, bem escrito, bem desenhado, sem papas na língua, irônico, sarcástico, apocalíptico, clássico, à frente, corajoso, genial!