
Era o RioComicon 2011, e uma equipe montava um tanto de improviso a caixa de som, microfones e uma pequena bateria elétrica, em meio ao corredor dos independentes, defronte aos vagões pintados pelos Gêmeos. Os músicos que se apresentariam em breve eram Ludovic Debeurme e sua namorada, Fanny Michaëlis, que acompanhara o convidado ao festival – lançando seu Lucille¹. Ela chegou de posse de seus dois primeiros livros publicados no mesmo ano, Peggy Lee e Avant mon père aussi était un enfant.
Fatherkid, a banda do casal, começou a tocar. Um dos momentos mágicos daquele festival, e Michaëlis ficou reconhecida entre os participantes como uma aparição, da voz doce e jeito encantador – como notou Cyn Bonacossa, em seu relato do evento que dá conta da então raridade de moças no recinto,
Mas, ó, pena. Pena mesmo que o trabalho dela permaneceu desconhecido². Mesmo assim, Fanny vendeu todos os exemplares de cada um de seus livros que trouxe na mala.
Peggy Lee, história encomendada para a coleção BD Music, narra a história da cantora com o desenho em estilo naïf, delicado, em que as proporções dos personagens tomam a medida de suas importâncias, a cantora ficando enorme, gigante, para proteger sob suas pernas o seu amado.

Entre as pernas, o entre as pernas, é uma das imagens mais recorrentes dos desenhos mínimos de Fanny. Desde a capa de seu primeiro livro em quadrinhos totalmente autoral, vislumbramos um bebê barbudo dentro de um berço, recortado por cortinas rosadas remetendo a uma vagina aberta. Avant mon père aussi était un enfant [Antes meu pai também foi uma criança] foi publicado por ninguém menos que a editora Cornélius.³ A capa já anuncia essa fissura no discurso de poder, masculino, silenciando a voz do pai, desenhando, ao longo do livro, uma história de segredos, de detalhes indizíveis. Pois se o discurso de poder pede tudo às claras, é no monólogo interior, na confusão entre a letra de mão e desenho, entre imagem de traços de grafite fino e esfumaçado e narrativa obtusa, onírica.

Ela diminui o tamanho desse Pai, o faz criança. Ela lembra, desde essa capa do azul cortado por grandes lábios rosados, que até mesmo o Pai nasce de uma mulher – o tal grande risco à hombridade, reconhecer-se devedor à Mãe.
O sonho, o decorativo, e o difuso marcam o estilo poético de Michaëlis, artista plástica, ilustradora para imprensa, livros infanto-juvenis, quadrinista e cantora. Nascida em Paris e vivendo ainda na cidade, expõe regularmente nas galerias Arts Factory e galerie 12mail e participou de várias exposições pessoais e coletivas; entre elas, integrou esse ano instalação da escultora Sara Favriau no importante Palais de Tokyo.
Em Géante, de 2013, é questão de fantasias sexuais de uma adolescente, muitas vezes extremamente fortes e violentas, perturbações de meninas em flor. Os pequeninos desenhos a lápis são a própria expressão psicanalítica do sonho. Como o nota o crítico Christian Rosset, sua potência está na forma, a ausência de contornos firmes, e uma “finesse” que chega a ser rude. Entre a loucura e o factual, tudo é fluido, assim como a ponta do grafite que se dissolve sobre a folha, e não há o determinismo do quadro.

Como ela explicou à revista Télérama,
“Meu desenho se exprime fora de quadros pois não sei desenhar quadrados – venho da pintura […]. Desenho sempre a lápis, pois adoro seu aspecto. A caneta ou a pluma me inibem bastante, não se pode apagar o resultado tão facilmente. Componho minhas páginas instintivamente: primeiramente um lápis de leve, depois avanço delicadamente. Considero a página como um objeto em si, próximo de uma ilustração. A circulação do branco e a intensidade dos cinzas importam particularmente para mim.”
Sua fluidez também a desloca entre a narrativa em quadrinhos e o livro ilustrado, uma tendência extremamente contemporânea entre autoras francesas – e muitos autores, também –, que quebram o quadro diretivo do discurso tradicional das histórias em quadrinhos, contra a rigidez das formas, variando seu trabalho entre os muros de galerias e páginas do livro.

Aos 33 anos, Fanny também publica na imprensa e em revistas, participa do coletivo Professeur Cyclope e acaba de publicar também pela Cornélius seu 7º livro. Além dos citados, também publicou em companhia de outros autores pela Actes Sud, e lançou Une Île em 2014 pela editora Thierry Magnier, com paleta de cores chapadas, como na ilustração infanto-juvenil ou de inspiração medieval.

Le Lait noir, que acaba de ser lançado, parte de sua pesquisa sobre a vida de seu avô, judeu vivendo em Berlim nos anos 1930. Nesse livro, a narrativa vem do telefone sem fio das histórias contadas pela família, e continua a exibir a tensão violenta do que se conta à doçura do desenho mínimo. Quando digo mínimo, é realmente bem pequeno: vi de perto originais de uma polegada.

¹ Barba Negra, 2011, livro que tive a oportunidade de traduzir em companhia de Valérie Lengronne.
² No mesmo evento, aliás, a grande colorista Brigitte Findakly, responsável por cores em desenhos de Joann Sfar, Christophe Blain, também acompanhava o marido, Lewis Trondheim: as autoras vieram como acompanhantes, a velha história.
³ Fundada por Jean-Louis Gauthey (ou Capron, seu nome como autor), é editora contemporânea da L’Association, dedicada a publicar obras mais poéticas e seguindo em geral restrições de cor e capas elegantes sem qualquer logotipo, em que o garbo mesmo de seu estilo denote a editora.
