
Pinacoderal: rudimentos da linguagem, de Diego Gerlach (Pé-de-Cabra), fez uma boa performance nas listas do Prêmio Grampo desse ano. A história é fragmentária, apresentando luta pela luta em um panorama holístico, e variou bastante nos quase 10 anos de sua produção, escoada em vários zines, revistas e reunida nesse livro (aliás, o design é do Pedro Franz, um luxo só).
Como Franz, Gerlach transitava pelas artes plásticas quando começou a desenvolver esses zines – e pela música, circuito que foi um foco importante para a circulação do material na inexistência de espaços específicos para os quadrinhos no Brasil (a mesma Pé-de-Cabra, aliás, lança agora uma nova edição de Menina Infinito, de Fabio Lyra, que surgiu na revista Mosh!, do RJ, vendida em festas indie). No caso específico de Pinacoderal, esse universo pós-punk é retratado tanto pela postura dos personagens quanto à interferência de estilos, em que o traço que define os personagens se estilhaça em um soco, e o pontilhado da retícula ou a imitação do grafite sobre a página vão simular o ruído de fundo da trama em primeiro plano.


Comecei a chamar de pós-punk depois que fui apresentada ao conceito de post-comics do Sébastien Conard. Há uma anarquia inerente a essa estética, sem necessidade de encerramento ou continuidade, reapropriação de referências clássicas e a própria forma do zine, do faça-você-mesmo, em que o fazer é liberador. “Se faço, não erro”, como já escreveu o próprio Gerlach, o que não pode ser lido como uma boutade egocêntrica, mas sim:
uma admissão do erro e dos equívocos potenciais como ferramenta básica na evolução/continuidade de qualquer obra. [Também] uma tentativa de me auto-encorajar naquele projeto específico, que tinha estancado algumas vezes em bloqueios criativos que até então me eram inéditos.
Além de todas essas questões estéticas importantes, e pouco evidentes para quem não acompanha o circuito zineiro, o posfácio autobiográfico do livro nos ajuda a entender o momento histórico em que a narrativa se produziu.
Ao voltar a minha cidade natal (São Leopoldo, RS) em 2007, tudo parecia muito diferente no lugar que tinha deixado para trás quase três anos antes e, ao mesmo tempo, igual. Os piores aspectos do projeto leopoldense haviam sido aguçados por minha experiência numa metrópole: marasmo, desolação, falta de perspectiva, boemia e criminalidade transformadas numa coisa só.
Esse texto que ele nos entrega apresenta o estado de desolação em que se encontrava a cena cultural brasileira no período (e é algo que pode retornar a qualquer momento): abandono político, ausência de eventos, inexistência de formas estáveis de publicação. E não é nada novo. Como escreveu o Luiz Gê em Território de bravos (Editora 34, 1993, p. 10):
Seguem-se alguns anos como chargista político e a quase inexistência de veículos para publicar quadrinhos, época da qual a primeira história deste álbum, a Editorial, ficou como registro. Ela foi feita em 1984 para o jornal Extra, que durou apenas um número. Aliás, como indicava seu nome. A história não saiu, mas eu não liguei, porque um ano depois ela continuava atual [ela aborda a potência dos quadrinhos]. Dois anos depois também. Veio o terceiro ano e no quarto eu a publiquei na Circo como história editorial do nº 1. Ela continuava atual. Hoje, dez anos depois, também… que azar!
E hoje também… Na realidade, é uma questão estrutural importante: no Brasil, lembra Laerte, “Há apenas 3.000 leitores”. Além da Censura e da autocensura pairando sempre, as ameaças à cadeia do livro, seja pelo novo imposto, falência de livrarias, o livro é um produto que circula pouco, que é caro (sobre a história do livro no Brasil, conferir LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. Edição rev ed. São Paulo: Editora Unesp, 2019. Há uma extensa tabela em que as autoras comparam o preço de livros, remuneração de autores e produtos desde 1820). Assim, a alternativa que Luiz Gê e amigos pensaram ainda nos anos 1960 para se publicarem continua atualíssima: o zine. Gerlach, mesmo se agora é publicado em livro (que é barato em termos nacionais!), ainda faz a defesa do gênero zine como instrumento de circulação fácil e barata. O punk não morreu de jeito maneira.
Devidamente por conta de seu caráter efêmero, é difícil catalogar e encontrar zines antigos. O que mais resistiu na memória foram as revistas antológicas, muitas delas surgidas como zine, feito a Balão do próprio Gê, Laerte, Lúcia Villar. Muitas das histórias da Pinacoderal apareceram primeiro em revistas, estas as grandes responsáveis pela sustentação e memória do quadrinho nacional nos últimos 20 anos. Para ficar apenas na primeira década do século, além da Mosh! (2004-2006), circulavam a Ragú (2000-2009), Graffiti 76% (1995-2012), a Coleção Tipos (2003-2008), Tarja Preta (2004-2011), Revista F. (2004-2006), Prego (2007-), Samba (2008-2012) e Kowalski (2009-2011), Café Espacial (2007-), das quais somente a última continuou ativa até hoje (a Prego hoje continua apenas como editora portuguesa, e o último lançamento foi simultâneo com a filha paranaense Pé-de-Cabra). A Beleléu teve apenas um número, e logo se transformou em editora intermitente – aliás, a periodicidade dessas revistas também variou bastante, sem o mesmo vigor que as revistas dos anos 1980. Para se ter uma ideia, a Animal, lançada em 1988, foi encerrada em 1991 com 22 edições, a Graffiti 76% alcançaria seu 23º número somente após 17 anos (aliás, corra para comprar livros Veneta direto nas livrarias especializadas de quadrinho, para receber grátis o revival de seu encarte, a Mau).
A Ragú teve sua primeira publicação no formato revista em 2002. Nesse intervalo, houve muita pouca produção nacional afora os gibis MSP ou Turma do Pererê, como se a produção nacional fosse apenas infanto-juvenil. Tem uns 10 pãezinhos de Bá e Moon, Almanaque Entropya com Rogério Coelho, Zé Aguiar, Antonio Eder, em meio ao “dumping” de estrangeiros nas bancas (como a Ciça e Zélio identificaram nos anos 1960 nos jornais brasileiros). Ainda tinha uns Chiclete com Banana, mas o espaço de invenção e contato com diversidade de autores ficou bastante limitado. Quando Cavaleiros do Zodíaco chegaram por aqui, o mato de italianos e heróis já tinha tomado as prateleiras jovens e jovens adultas das bancas. As revistas que surgiram nos anos 2000 nem espaço nas bancas tiveram. Seu processo de circulação foi similar ao zine: correspondências entre amantes de quadrinhos, dessa vez aceleradas pela via dos blogs e nascentes redes sociais, e o renascimento das feiras de quadrinhos, sobretudo a partir do FIQ de 2009.
É interessante observar esse período pois se, por um lado, houve um aumento acelerado de publicações após 2010, o surgimento dessas revistas é que preparou o terreno para as editoras que surgiriam no final dessa primeira década. Foi onde os autores se conheceram também entre si. A revista, disse a Amanda Miranda, “é uma versão impressa das feiras de quadrinhos”, um lugar de encontros. Desde as vanguardas até hoje, ainda apresentam um caráter formativo, de fazer escola, de reunir tendências. E nessa estrutura em que vivemos, de instabilidades de publicações, econômica, política, as revistas também têm, ainda, um papel de resistência importante. Acabam dando moldura a um processo que já existia no zine, ou em suas versões mais brasileiras, do cordel ao livrinho de mimeógrafo da geração de poetas/grafistas como Cacaso, Leminski. Pinacoderal testemunha esse processo recente, e a edição de Carlos Panhoca aponta para essas revistas e zines que formaram o Gerlach Autor. Lugares que permitiram seus erros, tanto no sentido do errar sem medo que ele vai perceber em grandes artistas como Raymond Pettibon, quanto ao flanar por histórias delirantes, histórias urbanas de nossa cena editorial, nosso universo brasileiro em uma encruzilhada cada vez mais claustrofóbica de cidade grande.
(Entrevista mais completa com Gerlach sobre as referências, você encontra no Vitralizado.) (Para ler a Parte 1 dessa série, clique.) (Esse texto seria impossível de ser escrito sem o auxílio do Guia dos Quadrinhos, apóie!)
Um comentário em “[Bartheman] “No meu tempo…” ou: os melhores quadrinhos da primeira década do século XXI (p. 2)”