Eu desconfio de listas, prêmios ou rankings. Não tenho certeza se realmente servem pra alguma coisa, além de mexer com egos. Afinal, quando dizemos que fulano ou beltrana é o ou a “melhor” do ano, sempre cabe perguntar: melhor pra quem? Por quê? Quais os critérios? Quais as intenções em escolher um melhor?
Daí que alguém me disse que é justamente por isso que se faz listas de melhores. Pra debater essas questões, pra discutir e pensar parâmetros, pra reconsiderar com mais atenção e cuidado não apenas aquilo que se leu, mas também o trabalho realizado por pessoas que dedicaram tempo, esforço e habilidade pra materializar ideias e visões em histórias em quadrinhos que acreditam que valem a pena compartilhar com os outros.
Essa perspectiva não apenas justifica a elaboração de listas, como também torna imprescindíveis esses textos nos quais a pessoa mais ou menos tenta explicar como e por que construiu sua hierarquia de valor entre obras tão heterogêneas quanto, no meu caso, Sendero Luminoso e Jane, a raposa e eu.
Evidentemente, não se trata de uma ciência exata. Das poucas certezas que tenho, uma é a respeito das constantes mudanças de percepção, não apenas do indivíduo, mas também do coletivo. O que eu defino como melhor hoje, pode não ser mais daqui a um ano. Os critérios são construídos sobre percepções e valores e não a partir de verdades absolutas comprovadas em laboratório. Repare, isso não tem a ver apenas com questões de gosto e subjetividade, mas com transformações constantes que vivemos enquanto pessoas e sociedade.
Na elaboração da minha lista, eu tinha em mente dois fios condutores: i) o modo como autor ou autora concilia suas características individuais de expressão com suas limitações técnicas e ii) política. Esses dois tópicos são, pra mim, indissociáveis pra pensar uma obra. Pelo menos, nesse momento de minha vida.
1) Modelo vivo (Boitempo), por Laerte
Daí que o primeiro lugar, o título de “melhor” da minha lista vai para Laerte. Modelo vivo combina uma coletânea de HQs feitas entre 20 e 30 anos atrás (a mais antiga é de 1987 e a mais recente de 1994) com uma série de desenhos de observação da figura humana e comentários da artista. Ao meu ver, Laerte é uma das figuras mais importantes da cena cultural brasileira. Também é uma atitude revolucionária viva, marcada pelo constante pensamento e reflexão sobre seu entorno social, sobre sua própria obra, sobre sua relação com o desenho e a arte e sobre sua identidade, sem jamais alienar essas dimensões umas das outras. Penso que Modelo vivo é uma amostra exemplar dessa combinação do olhar subjetivo, da imaginação e sensibilidade com a reflexão consciente sobre sua realidade e trajetória social e por isso está aí, no topo da minha listinha.
2) Você é um babaca, Bernardo (Mino), por Alexandre Lourenço
Conheci o trabalho do Alexandre Lourenço nas aulas de uma pós-graduação em quadrinhos que teve uma vez aqui em Curitiba. Desde então, acompanhei os “quadrinhos feitos em São José dos Pinhais”. Uma das coisas que me fascina com o trabalho do Lourenço é que ele lida, nas suas próprias palavras, com as limitações de seu desenho. Curioso que a gente tem essa impressão negativa da palavra “limitação” e o Lourenço nos mostra que dá pra transformá-la e extrapolá-la e, de repente, da “limitação” surge o estilo, cada vez mais consolidado, cada vez mais integrado a um projeto expressivo que culmina em um Você é um babaca, Bernardo. Ali, novamente tem essa reflexão que eu tanto gosto, que mostra como usar as características da linguagem dos quadrinhos pra propor formas de representação do fluxo de tempo de uma maneira que eu nunca tinha visto: tipo o uso da estrutura de nove painéis das primeiras páginas do livro. Desculpem minha empolgação, mas acho um bocado brilhante. Além disso, há a presença de dois elementos temáticos recorrentes em sua obra que me chamam especialmente a atenção: i) a representação de um sistema de trabalho opressor e desumanizante e ii) a resistência que persiste na imaginação e nos afetos.
3) Jane, a raposa, e eu (WMF Martins Fontes), por Fanny Britt e Isabelle Arsenault (tradução: Beatrice Moreira Santos)
Esse livro me encantou primeiro pelo desenho e isso é muito subjetivo sim. Achei a arte de Isabelle Arsenault muito linda, amei passear por suas páginas, por seu lápis e traço. Mas além disso, seus desenhos e o texto de Fanny Britt dão materialidade e consistência a um retrato muito preciso não só do sofrimento real de uma adolescente diante da rejeição e dos comentários cruéis de suas amigas, como também, ainda que de uma forma sutil e em segundo plano, das difíceis condições de vida de sua mãe, que sustenta e educa sozinha três crianças. Há muitas coisas legais no livro, como as relações com a obra Jane Eyre, de Charlotte Brontë e com os valores sociais de comportamento e beleza, mas a sequência de páginas que mostra a rotina diária da mãe de Hélene me comove em relação a uma existência dolorosa de abnegação e exaustão que entendemos socialmente como “natural”.
4) Hinário nacional (Veneta), por Marcello Quintanilha
Pensando sobre trajetórias e consolidações de estilo dentro de limitações técnicas, Hinário nacional mostra um Marcello Quintanilha em movimento constante. Das narrativas curtas de Sábado de meus amores e Almas públicas (ambas da Conrad), passando pelas longas Tungstênio e Talco de vidro (as duas da Veneta), o autor apresenta, sob as mudanças evidentes em sua abordagem da arte visual, uma elaborada representação das relações de poder e abuso de poder que permeiam a vida na escola, no trabalho, na família. O profundo esmero e habilidade com que Quintanilha aborda essas questões psicológicas e sociais dentro da cultura brasileira confere a sua obra uma relevância excepcional.
5) A agência de viagens Lemming (Devir), por José Carlos Fernandes
Os lemingues correm juntos para a beira de penhascos e se jogam no mar. Foi essa a primeira coisa que me passou pela cabeça quando li o título na capa de A agência de viagens Lemming. Viagens turísticas e suicídio coletivo. Esse tipo de humor/ironia permeia todo esse belo livro do português José Carlos Fernandes. Nunca tinha lido nada do autor e foi uma experiência muito bacana descobri-lo. Um servidor público conversando com o atendente de uma agência de viagens sobre possíveis rumos para suas férias e, a partir dessa premissa, José Carlos Fernandes constrói um mapa de ideias que borra todos os limites entre realidade e absurdo fantástico. Simplesmente fascinante. E muito engraçado.
6) Bulldogma (Veneta), por Wagner Willian
Buldogma foi o primeiro contato que eu tive com a obra do Wagner Willian. Gosto muito de histórias naturalistas, que procuram representar o real, criar a ilusão de real, nas falas, nas ações, no jeito dos personagens viverem e existirem. Deyse Mantovani tem muito disso: as picuinhas do trabalho de ilustradora freelancer, as conversas no café, as idas ao supermercado. Tudo é deliciosamente ordinário e então Willian começa a nos lembrar da natureza da ficção e nos toma pela mão e corre, voa, desdobra um sonho dentro do outro, desmonta a ficção, vira ela do avesso e nos fascina. É mágico.
7) Desconstruindo Una (Nemo), por Una (tradução: Carol Christo)
O grande trunfo de Una, a meu ver, é o modo como ela extrapola a ideia de autobiografia para falar de uma realidade que é dolorosamente comum a todos e todas nós. Além de relatar fatos documentados, além de compartilhar suas marcas pessoais mais íntimas e profundas, Una nos ajuda a desmontar percepções coletivas que definem papéis sociais e naturalizam inaceitáveis violências contra a mulher. Una faz tudo isso demonstrando um bom domínio dos recursos expressivos do meio, do uso de texto e imagem. Um trabalho extraordinário e imprescindível. Enquanto escrevo isso já me sinto arrependido e penso que deveria ter dado uma posição melhor para ela nessa lista. Toda lista é uma arbitrariedade fadada à injustiça.
8) Sendero Luminoso: História de uma guerra suja (Veneta), por Alfredo Villar, Luís Rossell e Jesús Cossio (tradução: Rogério de Campos e Barbara Zocal)
Eu fico remoendo esse livro. Ele me assombra. Nos países da América Latina, é evidente a estratificação das sociedades e tudo que é feito para fingir que essa estratificação não existe. Multidões de pessoas são mantidas em uma condição de miséria e são chamadas pelas pessoas mais privilegiadas de “povão”, de “massa ignorante”, desinformada e incapaz de “votar direito”. As relações dentro de cada sociedade são bem específicas e complexas, mas o ódio dissimulado, a manutenção de um sistema de exclusão e desigualdade, a ideia de um aparelho de Estado “mínimo” que serve apenas para sufocar possíveis revoltas e proteger os patrimônios do “cidadão de bem”, enfim, todas essas coisas são comuns. Eu prefiro acreditar que violência e opressão são características da direita, mas daí o Sendero Luminoso me traz essas histórias sobre uma luta armada pelos direitos do povo que parece não se importar em massacrar o próprio povo. Dentro de uma realidade na qual os interesses de pequeníssimos grupos privilegiados prevalecem sobre o bem social maior e a violência contra os desfavorecidos é naturalizada em diversas dimensões, a citação do epitáfio de Walter Benjamin pelos autores de Sendero Luminoso é perfeita: não há história da civilização que não seja também a história da barbárie.
9) O futuro (independente), por Denny Chang
Aquela pessoa sendo arrastada pelo PM truculento é uma pessoa. Não é uma vagabunda, não é uma esquerdopata, não é uma marginal. É uma pessoa. Nasceu de uma mulher, foi criança e talvez tenha frequentado a mesma praia que você. Ou talvez nunca tenha tido chance de frequentar uma praia. Essas coisas estão nesse gibi e me fazem gostar muito do trabalho do Chang. Ele traz um Chaplin quase esquecido pra lembrar que, dentro de uma sociedade industrial, tudo vira um análogo da máquina. Daí a ideia de construir uma “máquina de memórias”. Daí a descoberta de que memórias são mais como plantas do que como máquinas. Elas brotam, teimam em renascer. As memórias e os afetos. Chang costura todas essas coisas e ainda está lá a passeata, a manifestação contra a autoridade opressora. No fim, temos que lidar com os ferimentos que nossas próprias invenções nos infligem.
10) Sharaz-De: Contos de As mil e uma noites (Figura), por Sergio Toppi (tradução: Maria Clara Carneiro)
Eu não conhecia o trabalho do Toppi. Ou melhor, conhecia sim. Nas artes de Dave McKean em seu Signal to Noise, nos desenhos de Mike Dringenberg para o Sandman, em especial aquele encontro entre Rose e Morpheus na edição 13 que a Globo publicou lá em 1990. Um desenho que sempre achei muito lindo e que, pá, surpresa, era releitura do desenho que descobri na página 11 de Sharaz-De. Toppi e seu traço, sua construção de página, sua arrebatadora performance gráfica. Além disso, a releitura de uma história na qual um homem magoado decide matar mulheres só porque sim. Daí a estupidez do homem é contida pela inteligência de uma mulher. Com sua voz, com suas palavras-imagens, Sharaz-De vai ganhando o direito de viver mais um dia. Tem muitas leituras pra fazer a partir daí, mas como vivo em um país onde as pessoas que trabalham com produção cultural são consideradas “vagabundas” pelos “cidadãos de bem”, fico pensando se Sharaz-De é um exemplo da mais brilhante forma de resistência e revolução ou se apenas representa a infeliz condição de quem precisa entreter o próprio carrasco.
Se você tiver a fim de ver outra lista minha, com outros critérios (bem mais subjetivos) sobre os “melhores” de 2016, você pode clicar aqui.
Acho que a coisa mais importante desse processo não é o consenso sobre qual é o “melhor” de 2016, mas sim essa discussão, essa exposição de pontos de vista, essa tomada consciente de posições e diálogo. Isso é celebrar nosso trabalho. É muito bom e muito importante.
Valeu, gente.
Um ótimo ano pra todos e todas nós.
Boa sorte.
Post maravilhoso! Parabéns pelo blog! 🙂
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