Entre 2010 e 2011, Maria Clara Carneiro, então produtora editorial da editora Barba Negra, foi a tradutora de Patrice Killoffer em sua passagem pelo Brasil. Ela também aproveitou pra fazer esta entrevista para o hoje extinto site da Barba Negra. Recuperamos a bichinha (além de um texto sobre a greve na editora L’Association).
Todo o texto abaixo é da época em que foi publicado.
Estamos na Entreprise Culturelle, associação para a realização dos mais diversos projetos artísticos. Entre os autores associados, dupla Ruppert e Mulot, que está finalizando um campeonato de braço de ferro desenhado entre autores, para o qual convidaram diversos desenhistas, entre os quais, nosso Killofer.
Maria Clara Carneiro: Então é você quem mora com o Killoffer? Ele é gentil?
Mulot: Sim, ele arruma a casa, faz omelete…
Killoffer: Eu cozinho muito bem.
E lava a louça?
Desde que terminei 676 aparições [de Killoffer (Barba Negra, 2010)] costumo lavar louça todos os dias.
Mas… todos os dias? Por quê?
Você leu meu livro?
Durante o almoço, Killoffer demonstra sua grande identificação com a Barba Negra. Recentemente, instituiu o bigode como marca obrigatória de todos os autores e ainda pretende mudar o nome da Vila em que trabalham para Villa de La Moustache.
K: 1… 2… “Sous le pont Mirabeau coule la Seine et de mes amours il faut que je me souvienne… “
Killoffer cantarola no gravador antes de começar a entrevista. Seu estagiário, Philippe, primeiro dia de trabalho, pega o violão para embalar a sesta. Os dois e Barba Negra se alongam nos sofás do estúdio, depois do almoço.
O que você está cantando?
São minhas composições, não escrevo canções de fato, porque em geral não há letras. Espero que o cantor ou a cantora que vier fazer parte do grupo dê corpo a tudo isso. Bem, até agora, no grupo, só eu componho. Mas também não tem mais ninguém.
O que você toca?
Violão, como todo mundo…
Bem, vamos começar, queria que você se apresentasse um pouco, quem é você…?
Peraí, trabalha um pouco mais aí, eu não tenho que fazer o trabalho sozinho.
Então, Killoffer, quais autores, obras que seriam tuas principais referências?
Antes de mais nada, as vanguardas do início do século XX. Tudo o que for dadaísmo, cubismo, todos os ismos. Não, todos, claro, futurismo, não gosto tanto, embora tenha alguma coisa disso. Impressionismo, não, realmente não é o que eu gosto. E depois disso, fica tudo um pouco solto, é mais complicado. E agora me desprendi de tudo isso, espero.
E os livros de que você gosta?
Tive um choque lendo Céline. Beckett… teve um período Zola bem pronunciado, aliás isso faz parte das minhas origens sociais.
Falando em Zola, você ilustrou o Manifesto Comunista… esse lado vermelho te interessa?
O comunismo não seria nada mal. E aliás, todos os artistas que citei agora, todos os ismos… não todos, claro. É tentador como ideia, apesar de nunca ter se concretizado. Mas continua uma ideia válida.
Você parece ser mesmo idealista. Trabalho partilhado em estúdios coletivos, associações (a própria editora que ajudou a fundar se chama L’Association), o OuBaPo (outro grupo que fundou), dividir apartamento e ainda multiplicar seu próprio personagem que nunca fica só, ainda que esteja consigo mesmo. Você é um ser coletivo?
Ah, sim, e eu me partilho eu mesmo também. Gosto muito de ter várias namoradas ao mesmo tempo, e também de bacanais. Não, mentira. Isso continua sendo uma fantasia.
Mas sobre coletivos, sim, adoro. Agora estou cuidando dos desenhos do Tigre (revista coletiva de arte e literatura). Fizemos um tratado sobre isso na L’Association. Era mais do que uma aventura coletiva. É um desejo que eu tenho. Gosto muito das páginas coletivas em que um termina o desenho do outro, todos em volta de uma mesa, fazendo uma coisa juntos.
(nesse instante, Killoffer pega o celular/gravador, aproxima de seu derrière e peida sonoramente).
Eu falo nesse telefone.
Não ficou cheiro.
Você disse que sonha com um cartum que seria também um furo de reportagem…
Na [revista] Lapin, isso. Sim, falei sobre os cartuns, porque são desenhos que sempre se relacionam a um evento que o leitor deveria conhecer. Então, não podemos avançar, é impossível dar um furo de reportagem com o desenho.
Queria saber como você se relaciona com esse trabalho de cartunista, é preciso que você leia bastante…
…as atualidades. Sim, claro. Gosto muito da imprensa. O princípio de comprar um jornal, como leitor, primeiramente. Um jornal, um encontro.
E como desenhista, gosto dos cartuns porque às vezes temos a impressão de que nosso desenho é inútil, mas há ali uma existência social, que vai falar com as pessoas.
E depois, a rapidez da publicação é mais agradável. Quando você trabalha para a imprensa cotidiana, você se encontra na esquina, nas bancas, você pode me encontrar jogado no chão, na rua. Faz parte do mundo, da cidade. Vive com as pessoas.
Pode ser também ainda a coisa do coletivo. É um modo de viver com os outros. É diferente de um desenho para uma exposição, mais fechado. Alguém vai comprar o desenho, pendurá-lo na parede e depois voilà, fica restrito ao uso privado. O cartum é público.
E como você definiria as histórias em quadrinhos?
Eu não conheço uma definição definitiva da coisa. Se eu ensaiasse te dar uma que me parecesse vaga o bastante para não injustiçar todos os que praticam “quadrinhos”, me dou conta de que seria impossível.
Não conheço nada além de minha própria definição de história em quadrinhos. Tento produzir uma prática singular, o ponto de vista englobando uma definição geral que não é a minha, e eu recorto o espaço em uma outra direção: o particular.
O que você acha da L’Association [editora da qual é sócio-fundador] nesse momento? É um pouco triste ver essa ideia coletiva acabando.
Também acho. Apenas oito funcionários que gerenciam tudo, não é mais uma associação, é a editora de Menu (Jean-Christophe Menu, editor chefe, único membro fundador que continua gerenciando a produção).
Mas há coisas acontecendo lá, não posso dizer muito porque nem sei. O que é público, é que tem gente que não está de acordo, principalmente os funcionários, que estão em greve e querem movimentar as coisas. Não sei no que pode dar. L’Association pode morrer, pode se transformar, tudo é possível.* (mais sobre isso lá no final do texto).
Antes você afirmava que não iria cair na autobiografia. No entanto, você é conhecido hoje pelo desenho que você faz de si mesmo, apesar de eu não achar que seja você mesmo, mas um personagem.
Ah, sim, ele é mesmo formidável. Primeiro, ele é muito bonito.
Sou eu quem comanda. Ele faz tudo o que eu quero. Não, não é verdade, por exemplo… há algumas histórias em que o personagem vive uma vida própria.
Antes eu não acreditava que isso existisse, quando eu ouvia escritores explicando que seus personagens viviam suas próprias vidas. Depois eu comecei a me contentar em apenas descrever o que acontecia com ele. Ele vive por si só. Eu não acreditava, mas… depois dessa experiência, isso existe, sim. É possível.
Ou ainda, a partir do momento em que você conhece bem teu personagem, você se dá conta que ele não pode fazer as coisas que ele deve fazer. Você dá uma situação ao personagem, com a lógica que ele tem, a personalidade, ele vai agir sozinho, vem tudo dele.
Então, é um personagem que eu conheço bem, muito fácil de fazer.
Quando se busca um personagem, você pode se irritar inventando alguém, então você pensa naquilo que é mais próximo de você. Eu acho que ele ainda vai evoluir. É bom quando você se toma como personagem, você pode fazê-lo envelhecer.
Quando o personagem é fictício, sem base biográfica nem autobiográfica, é idiota deixá-lo envelhecer.

Nas obras do OuBaPo, muitos de vocês se desenhavam e desenhavam uns aos outros, dava para acompanhar o universo de vocês pelos exercícios.
Bem, nós fazemos parte de uma geração que praticou muito o autobiografismo. Uma grande moda da autobiografia. Antes só havia Crumb e Pekar, mas depois teve toda uma onda com Julie Doucet, tantos outros… mas é bem despojado, é algo novo.
E realmente permite ao leitor de conhecer como é esse universo…
É também o que eu gosto em Le Tigre, além do trabalho em grupo, de fazer parte de um universo próprio, que apresentamos ao leitor. É algo que acho caloroso, generoso.
E em Le Tigre, você é autor e coordena a parte de desenhos.
Sim, eu cuido dos desenhos.
E há trabalhos coletivos, então?
Há páginas de produção em grupo, no fim da revista.
E o que você achou do Rio, da recepção no Comicon?
Era perfeito. Gostaria muito de voltar. As brasileiras fazem amor muito bem.
É, anunciam isso nos guias turísticos.
É claro. Mas para eu ir ao Brasil, eu me lavei, hein. Tomei um banho antes de ir.

Conta um pouco como foi a criação do 676 aparições… Você tinha que escrever um livro sobre o Quebec.
Na verdade, não. Uma associação francesa que envia artistas para o Quebec ou traz artistas de lá para a França que me enviou. Pediram para escrever algo que abordasse um pouco o lugar, mas não era obrigado a escrever realmente sobre lá. E nem falo, de fato, sobre isso no livro. Era apenas um pretexto para a história.
Antes, eu tinha pensado em fazer uma espécie de reportagem desenhada, cadernos de viagem em que eu contaria minha visão sobre o Quebec.
Acho que fiz umas oito páginas assim e não gostei nada, achava desinteressante. Então, deixei passar um ano e voltei, partindo de um substrato de base autobiográfica, mas me liberando, delirando.
Na verdade, o princípio de desdobramento de Killoffer vem de uma história em quadrinhos que eu tinha feito por uma garota, por quem eu estava apaixonado. Mas ela era inédita, pois eu tinha mandado pra ela, que, certamente, nunca a publicou.
Funcionou com ela?
Não. Mas por outro lado, me permitiu fazer um livro logo depois. Essas frustrações servem pra alguma coisa, assim mesmo.
Tudo bem, posso fazer minha sesta? Deixa gravando porque eu ronco perfeitamente.
Bem, acho que tá tudo certo. De qualquer forma vou editar tudo.
Você vai mudar a ordem…
Na verdade, vou escrever o que eu quiser e dizer que foi você.
*
No dia 11 de abril de 2011, em Paris, um encontro histórico reuniu grandes autores dos quadrinhos contemporâneos franceses. Lewis Trondheim, David B., Killoffer e JC Menu chegavam ao ápice de uma discussão intensa que há muito se arrastava entre eles. Uma conversa difícil que durou cerca de seis horas, de acordos firmados na marra. Tais autores fundaram, há cerca de 27 anos, a editora L’Association, que se tornou a mais importante editora de vanguarda do final do século XX, publicando nomes importantes como Joann Sfar e Marjane Satrapi. O nome indica o caráter da empresa, que, por ser uma verdadeira associação, de acordo com a lei francesa de 1901, não tem fins lucrativos, possui estatuto próprio, visando sempre um trabalho coletivo. L’Association à la Pulpe, seu nome completo, foi fundada como uma “associação de apologia à nona arte livre”.
O projeto original era de publicar quadrinhos que, até então, não eram publicados pelas grandes editoras. Com o sucesso de obras como Persépolis, o quadrinho autoral francês conquistou também o mercado. Menu era contrário ao trabalho dos autores da L’Association em tais editoras, assim como se recusa até hoje a ver matérias sobre L’Association na imprensa generalista de quadrinhos. Essas brigas ideológicas foram afastando o grupo, e, apesar do sonho de um trabalho coletivo e autoral, muitos autores deixaram de participar do comitê editorial, e Menu foi tomando a dianteira da associação. Ele assumiu o comando da editora por completo em 2005 e não pensava em deixá-lo (entrevista que fiz com ele, em 2008).
No dia 10 de janeiro de 2011, os funcionários da editora entraram em greve. Pelo visto, Menu queria demitir quatro dos sete, para assumir cada vez mais o controle da situação – e dos quadrinhos da L’Association. No começo, os setes sócios-fundadores da L’Association, todos autores, formavam o conselho editorial. Depois que Menu assumiu, os autores não opinavam mais sobre o rumo da editora. Assim como os sócios aderentes e os funcionários, responsáveis pelo trabalho braçal, administrativo, comercial e gerencial da editora. Com o conselho ausente, com muitos dos autores se retirando da editora por conta de brigas, e a greve, Menu propôs um novo conselho, com 14 membros, que excluía os autores da estrutura. A guerra se intensificou, com emails raivosos de Trondheim e um longo texto de David B.
Nas semanas seguintes à greve, os autores voltaram a se encontrar. Tudo ficou sério durante o lançamento de Royaume, dos autores Ruppert e Mulot, na pequena livraria de um amigo (e ex-funcionário da editora), Guillaume Dumora. O dono da Le Mont-en-l’air estava gravando seu programa de rádio – eu estava lá, e falei alguma besteira sobre a tradução das 676 aparições de Killoffer ou sei lá o quê. A gravação registrou as idas e vindas de Killoffer ao telefone, que não deixou de comentar para o entrevistador que o pior havia chegado. Havia a denúncia de uma assembleia secreta. A evidência se deu durante o mais importante evento de quadrinhos do país, o Festival de Angoulême, realizado no final de janeiro: foi notório o estande da editora, coberto apenas com os panfletos dos funcionários e, aos poucos, tomada pelos autores-colaboradores.
Diversos autores se reuniram para ajudar os grevistas, e suas obras foram vendidas em um leilão on-line. Killoffer ilustrou diversas convocações para a assembleia geral, marcada para o dia 11 de abril, dois meses após o fim da greve, um insulto à longa espera dos autores e funcionários. Sendo o logo da editora uma hidra, Killoffer ilustrou uma das convocações com o mascote apresentando todas as cabeças cortadas menos uma, a de Menu.
A assembleia geral, no fatídico 11 de abril, teve resultado positivo para a maioria dos autores, com o retorno à estrutura anterior. A presidência da associação voltou ao poder de todos os seus sete fundadores: David B., J-C Menu (sim, seu trabalho como editor continua louvado, mas ele logo debandou e fundou a ótima, mas pequenina, L’Apocalypse, em 2012), Lewis Trondheim, Killoffer, Matt Konture, Mokeït e Stanislas. Alguns já se afastaram novamente, Killoffer e Trondheim sendo os mais ativos. Uma vitória para os quadrinhos franceses e do trabalho coletivo, que continua mostrando bons frutos por aí. A tal reunião virou um livrinho: toda ela foi transcrita como se fosse texto de teatro, com os risos e urros da plateia indicados, e enviado como presente para os associados, em 2012.
(Este texto também foi publicado no site da Barba Negra na mesma época da entrevista com Killo)
PS – Vale indicar também a investigação tuítica puxada por André Valente sobre como Killoffer faz o branco no seu desenho.
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