[Bartheman] Da solidariedade icônica

julie doucet wordy

Julie Doucet, autora canadense da geração de Seth, Chester Brown, Adrian Tomine, tem um trabalho interessantíssimo. Não é só sobre ela que vou escrever aqui, mas gostaria de partir dessa página acima para divagar um pouco sobre quadrinhos.

Ela escreveu diários em quadrinhos, autoficções e relatos de sonho, mas hoje prefere fazer poemas visuais. Seu trabalho é um exemplo de como a matéria verbal pode virar matéria gráfica também visualmente importante, ou seja, como o “texto” ganha tanta importância na página, e ainda assim ser quadrinho. Como tantos outros de sua geração, a verborragia se faz imagem que não rivaliza com o desenho; geração não apenas canadense, pense no fanzine punk, eu penso em Mattt Konture. A texto faz parte da imagem, porque, afinal, no quadrinho, a escrita é tanto imagem quanto os bonequinhos.
 
Mas aí, vez ou outra, alguém vem com uma régua e diz: tanto assim de texto não é mais quadrinho.
 
Vez ou outra, a gente fica nesse enigma Tostines®: quadrinho é mais imagem recheada com texto ou é bishcoito de texto recheado de desenho? Não há medida exata de quanta matéria gráfica se sobreponha à matéria verbal para a gente poder cravar quando um texto é invadido pela quadrinização ou quando uma tira vira um poeminha.
 
O barril mágico de Lena Finkle, de Anya Ulinich. WMF Martins Fontes, 2017, tradução de Érico Assis

 

Não digo que seja bobagem discutir, o problema é que as próprias discussões parecem querer descobrir a pólvora toda vez, sendo que há um século e meio essa mídia existe, tem uma consistência, já foi tantas vezes analisada e, ainda assim, ainda há certo apego a um personagem mítico fundador (o menino amarelo) ou a um elemento intrínseco que a definiria, por metonímia (o balão).
 
Quantos documentos repetem esse vício, esse apego, para justificar uma origem datada, enquanto que a gente sabe, nas humanidades, na história, que nenhum evento (histórico) surge do zero. O que vai gerar o quadrinho como conhecemos é uma confluência da história visual e da história da narrativa, não elementos isolados como desenho e texto. A tendência em se pensar o ponto zero dos quadrinhos parece querer apartá-los e glorificá-los como um efeito isolado das outras artes (visuais, sequenciais, narrativas, de leitura).
 
 
texto lucca quadrinhos festival
ata

Digo apego, porque parece que essas ideias nem olham direito para o objeto que examinam. A própria mitologia do menino amarelo finge que não vê que até o balão, ali, é uma ideia furada (não era bem balão de fala). E o balão já é um elemento antigo (o filactério) na história da arte. Mas, para além de entrar em minúcias, queria frisar que essa vontade de cisão, de marcar o ponto zero, vem emprenhada de um apagamento: apaga-se os nós que ligam a própria história em quadrinhos à história da arte. E acontece aquelas coisas bem loucas como a leitura anacrônica para tentar provar que o passado é que plagiava os quadrinhos. Fazer isso é desprezar a especificidade do vitral, por exemplo, pensando uma heráldica da história da história em quadrinhos, e não uma História de fato. Ou seja, uma busca por validar essa arte como antiga que parece ignorar o que faz o quadrinho contemporâneo ser quadrinho.

 
Olha, eu curto uns plágios por antecipação, mas a maneira como isso é feito parece mais um canto apologético do que uma verdadeira análise.
 
quadrinho 1700 balão
Reform Advised. Reform Begun. Reform Complete. Thomas Rowlandson, 1793. Beeeem antes de Töpffer e muito mais do Outcault. Obrigada, Liber, por essa graça compartilhada

 

Como já escrevi antes no satélite empolado do Balbúrdia, não é só os quadrinhos que são arte sequencial, mas toda arte que tenha a ideia de progressão narrativa. O gênero narrativo, por sinal, é transversal a muitas e muitas formas de arte, quadrinhos sendo apenas uma delas. O que acontece nos quadrinhos, no entanto, não é puramente narrativo: pode haver o narrativo, mas também há o contemplativo. Pierre Sterckx, jornalista e crítico, fala em duas ordens, a narrativa e a plástica, competindo pelo mesmo espaço.
 
Thierry Groensteen fala da solidariedade icônica, mas ela serve apenas para explicar a relação que os elementos na página vão exercer: não há ligação pela ideia de sequência, mas pelo nó entre os elementos de uma página. O que Groensteen aponta serve para pensar a ligação entre os elementos materiais. O que Sterckx explica é que essas conjunções operam em duas ordens, uma que encaminha a progressão narrativa (essa, normalmente, sequencial) e outra que cria os efeitos estéticos não necessariamente narrativos (um deles é a grafiação, a mão do autor que aparece/desaparece no texto, nos dando uma impressão de presença/ausência de um enunciador). O problema em dizer “solidariedade icônica” seria, justamente, em que não há apenas “imagens solidárias” (ícone).
 
Os nós se dão em várias camadas, e uma delas é a verbal, ou seja, aquela que a gente pode verbalizar, contar (enquanto a parte gráfica só pode ser descrita).
 
 
alias cat 1
 
Essa semana, lendo Alias cat, do Kim Deitch (autor que traduzi há pouco tempo e já amo pacas), topei com essa página acima. Veja que há uma progressão narrativa, mas ela não é necessariamente encaminhada pelas imagens. O texto vai contando a história, mas a página nos convida a percorrê-la de forma constelar. Essa é uma bela visão dessa tal solidariedade icônica, que continuo a usar, mas querendo dizer que o texto também é imagem (ícone). A palavra que Groensteen usa para definir essa solidariedade, a artrologia, me parece bem melhor, nesse sentido, pois ela integra a noção de justaposição, elemento que funda as relações na página de quadrinhos.
 
deitch lista
 
Deitch, por sinal, faz isso o tempo todo. Sua página é montada na forma de um grande inventário. Como ele conta na história, ele e esposa adoram velharias encontradas em mercados de pulgas, parece que sua vontade de acumular reflete voluntária ou involuntariamente a grande acumulação de elementos na página. As coleções do casal parecem infinitas, e a lista faz isso mesmo, aponta para o infinito (Umberto Eco).
 
Deitch articula os elementos como se montasse modelos atômicos, com elétrons rodopiando em torno de sua grande massa nuclear (ele mesmo, ali, autorretratado e seu gato). E é tudo trabalhado tão no nível microscópico que fico pensando que cada objeto colocado é uma partícula subatômica da página.
 
deitch atomico
Ainda Alias cat, de Kim Deitch. Johnatan Cape, 2007

 

Minha irmã, Doutora em Geofísica, me explicou que elétrons e neutrinos são léptons que compõem o átomo, enquanto múons são alguns dos léptons que não fazem parte do átomo, mas estão atravessando a gente o tempo todo. Digamos que neutrinos sejam a letra de mão, os elétrons a figuratividade, e os múons a ordem narrativa que atravessa esses elementos (Desculpa, Lila, tentei).
 
Nessas páginas, parece bem claro como essas relações não ocorrem uma após a outra, mas é sempre A RELAÇÃO que cria o sentido.
 
365 Days: A Diary by Julie Doucet | Amazon.com.br
365 days, de Julie Doucet. Drawn and Quarterly, 2003
 
Doucet e Deitch têm em comum o fato de preencherem a página inteira, num horror vacui (ou kenofobia, o medo do vazio); a primeira faz pelo texto que vai complementando a página, enquanto o segundo explode micronarrativas e ainda complementa com ranhuras. Em ambos os casos, há justaposição, e a ideia de sequência também, cada uma sendo dirigida por relações diferentes na página: em Doucet a repetição que vemos ali de si mesma representada, em Deitch é sobretudo o nível verbal que conduz a sequência.
 
Comentando Aqui, de Richard McGuire, Diego Gerlach me fez perceber como a sequência narrativa do livro é comandada consterlarmente, não há nenhuma eliminação da sequência, mas sim sobreposição de variadas sequências narrativas. Um aproveitamento do espaço que sempre esteve ali, pois a justaposição também se dá nessa sobreposição.
 
Aqui, de McGuire, Cia das Letras, 2017, também tradução do Érico Assis

 

O leitor pode voltar e reler e reorganizar a sequência, ficar com uma noção de roteiro ‘em nuvem’. Mas a cada leitura há uma sequência percorrida, fruto da justaposição de imagens. A descrição gráfica desses eventos ainda é razoavelmente linear, agrupada por temas, espaço. (Diego Gerlach, em conversa)
 
 
 
A leitura do McGuire, como em Deitch, é artrológica, se dá pela constelação (ou seja, astrológica, também), mas é sempre uma leitura. Então, quem se apega à imagem ou ao texto, parece esquecer de olhar o que de fato acontece nas páginas, pois o que importa são as redes de interferências entre tudo o que está ali (tanto o nível visual quanto o verbal) e o de fora (intertextos, arquitextos, transtextualidades).
 
O diferencial dos quadrinhos da leitura de texto, é que, no texto, fica mais difícil quebrar a ordem de leitura (da esquerda para a direita, nas línguas europeias): ou seja, entre todas as “artes sequenciais”, a solidariedade entre elementos da página em quadrinhos potencializa uma leitura por ricochetes, do olho passeando pela página. Mas a pintura também tem disso, mas a pintura é outra história, continuo depois?
 
 
P.S.: Viu a leitura de André Valente do Aqui, a partir do último 1, 2, 3… já!?
 
P.P.S.: Valente me deu vários presentes essa semana, entre eles o McGuire no baixo.

Publicado por mckamiquase

Maria Clara Ramos Carneiro on ResearchGate https://orcid.org/0000-0003-2332-1109

5 comentários em “[Bartheman] Da solidariedade icônica

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